SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 20 de junho de 2013

ALGUÉM SOZINHO NA MULTIDÃO (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


De repente se viu em meio à multidão. Não estava ali para protestar contra os preços de tarifas, a corrupção desenfreada nas instituições de poder, os gastos exorbitantes com os estádios da copa nem contra as mazelas na educação, na segurança, na saúde e nos demais serviços básicos à população. Nada disso. Não estava ali nem para o grito nem para o protesto.
Estava ali, sim, à procura de alguém no meio da multidão. Por mais que fosse pessoa revoltada com a situação insustentável do país, principalmente pelos poderes apodrecidos e a devassidão da classe política, ainda assim estava em busca de, talvez, encontrar um grito conhecido no meio da multidão.
Se fosse noutros tempos, certamente seria a primeira pessoa a empunhar bandeira de luta, a soltar o grito preso na garganta, a marchar pelas ruas sem medo de repressões. Num tempo que lia livros vermelhos, tinha sonhos reacionários, procurava transformar o mundo através das manifestações antiburguesas, anti-imperialistas, anticapitalistas, anti qualquer coisa que afrontasse a dignidade do povo.
Num tempo de devoção especial pelas causas comunistas, pela luta do proletariado frente à ganância e a desumanidade do capitalismo, pelo sonho maior de tomar o poder através dos ideários revolucionários. Noites adentro, sob a luz de velas, lendo aqueles livros proibidos de estar nas estantes das livrarias, pelo teor subversivo que continham.
Possuía dezenas de manuais de guerrilhas urbanas e nas selvas, e também grande número de livros sobre Trotsky, Lenin, Fidel Castro, Mao Tse-Tung, Che Guevara, Rosa Luxemburgo, Karl Marx, Engels, Proudhon, Bakunin, Gramsci, bem como obras conceituais sobre materialismo, socialismo, anarquismo, guerrilha, revolução e luta proletária, dentre outros temas.
Mas era pessoa normal. Não comentava com qualquer um sobre seus ideários, seus sonhos revolucionários ou suas propensões para as lutas em nome dos menos favorecidos. Somente perante amigos confiáveis, adeptos do mesmo pensamento ideológico e verdadeiros revolucionários às sombras, é que planejava, idealizava e dialogava suas utopias. Mas nunca conseguia mudar nada. Um país grande demais para pouca gente lutando.
Havia sido liderança estudantil, participado de sindicato, redigido muitos manifestos para ser entregues em portas de fábricas, erguido a voz conclamando os desiguais para a luta contra os iguais no poder e na riqueza. Fazia isso com tanta vontade, tanta ênfase e disposição, que chegava a ficar um dia inteiro se alimentando somente da esperança de transformação. E nada conseguia. A classe por quem tanto lutava acabava se submetendo aos donos do poder.
Um dia, depois de sofrer prisão para averiguação e ter de suportar torturas para não delatar amigos, resolveu que sua guerrilha havia terminado. Jamais mudaria qualquer realidade ao redor se a própria classe sofrida não participasse dessa luta. E o que via em todos era a passividade, a escravização consciente, a submissão remunerada ao capitalismo. Não podia lutar em nome de todos. Então, mesmo se martirizando por dentro, decidiu que era hora de depor suas armas.
E assim fez, e assim continuou até ouvir os boatos sobre as manifestações tomando as ruas das capitais e as televisões mostrando um povo encorajado pelas mudanças. Chorou ao sentir que o povo, enfim, havia despertado e marchava, sem medo, pela estrada da luta, da indignação frente à nefasta realidade política, social e econômica. Desejou se somar àquelas multidões, erguer novamente a bandeira e gritar ódios guardados desde muito. Mas resolveu que não. O seu tempo já havia passado.
Mas não podia deixar de entrar no meio daquela multidão. Não mais para protestar, mas apenas para ver se encontrava alguém que certamente estava ali, e novamente despejando toda a sua fúria revolucionária. Desde muito que não o encontrava e, se vivo estivesse, ali, em meio às milhares de pessoas, seria o único lugar onde poderia reencontrá-lo. Então seguiu para o meio da manifestação popular.
Sem camiseta com palavras de ordem, sem bandeira, sem cartaz, cara pintada, sem qualquer palavra ou grito na boca. Apenas ela, tão solitária e muda em meio à imensidão da massa. Em busca do grande amor de um dia. E um amor inesquecível como uma guerrilha num coração ainda apaixonado. E ouviu um grito, uma voz, então olhou na feição.
E que revolução no coração. Era ele. Era ele sim. O despertar de uma nação.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Nenhum comentário: