SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 12 de agosto de 2016

CHORA CATINGUEIRA, CHORA...


*Rangel Alves da Costa


Chora catingueira, chora... Não há mais sertão de vegetação nativa, de arvoredos imponentes nem de troncos largos e esguios. Não há mais folhagens zunindo ao vento do entardecer nem murmurejando dentro das sombras das noites. Já não há mais a profusão de baraúnas, angicos, craibeiras, cedros, quixabeiras, juazeiros e barrigudas. O sertão está feio, desolado, devastado, desnudo, numa desertificação sem fim. Já não há pé de pau para o ninho do passarinho, para o pouso, repouso e canto, da juriti, do coleirinho, da nambu, da rolinha fogo-pagô, do bem-te-vi, do beija-flor. Quando o sol desce, ao invés de arrefecer suas chamas nas copas dos arvoredos, acaba se espalhando pela terra nua e desta se estendendo em calor pelas paisagens e arredores. Por isso que a catingueira chora. E chora pela solidão nos dias e nas noites, chora pela ausência daqueles seus amigos de tronco, folhagem e flores. Chora pela desilusão desesperançada de já não poder avistar os velhos viajantes em busca de sombreado nem dos bichos sertanejos procurando guarita ao seu redor. Depois que o facão foi passado nos troncos e a coivara definhou o que restava da vida, então restou somente a testemunha da dor e do sofrimento: a catingueira que agora chora. E com razão, pelo dilaceramento do coração, chora catingueira, chora...
O choro da catingueira é o mesmo choro, o mesmo sofrimento do sertanejo. O sertão, que um dia foi de pujante vegetação, com árvores pequenas e graúdas espalhadas por todo lugar, aos poucos foi sendo dizimado pela mão humana. Mesmo com a derrubada de grande parte da mata para a formação de pastagens, a abertura de estradas e o surgimento das malhadas nas fazendas e sítios, ainda assim restava uma vegetação que encobria de vida o mundo ora ressecado e ora verdejante do sertão. Também os bichos possuíam habitat seguro e garantido contra os forasteiros e invasores. Não precisava ir muito longe, mata adentro, para avistar a onça, o veado, o porco-espinho, o caititu, o tamanduá, a raposa, o guaxinim, a cobra grande, a codorna, a galinha do mato, toda uma espécie de pena e pé. A mata fechada, de difícil acesso e penetração, se mantinha resguardada dos aventureiros cheios de avidez e cobiça. Apenas uns poucos desbravadores, verdadeiros colonizadores das vastidões sertanejas, se instalaram nas regiões mais altas ou pelos arredores das fontes e riachos, fincando moradia, fazendo curral e abrindo pastagem, ali se fixando num destino de permanência. Também os rebanhos e os bichos de cria foram sendo assimilados à dura e difícil realidade sertaneja. Não havia riqueza nem fartura, mas era uma ambientação onde o homem se sentia contente e realizado pelas próprias características da região: uma paz cheia de luz e de sol, um encantamento e magia nos cores do entardecer e nos madrigais passarinheiros do alvorecer.
Por muitos anos o sertão se manteve alentado na natureza, no homem e no seu animal. Uma vida cheirando a cuscuz ralado, a queijo de quintal, a café torrado, a arroz batido em pilão. O homem de tudo, o homem do mato, o homem da roça, o homem caçador, o homem vaqueiro, o homem aboiador, o homem fé, o homem, religioso, o homem esperançoso demais. O boi, a vaca, o cavalo, o cachorro perdigueiro, o chapéu de couro, o roló de cortar estrada, o alforje e o embornal. Assim a vida, ou aquela vida. As secas constantes, ainda que em muitas delas o homem e o bicho tivessem chegado ao retrato de couro e osso, jamais fizeram o sertanejo desacreditar no seu chão. Aqueles que partiam em retirada, pelo mundo sem destino em riba de paus de arara, voltavam alegres assim que ouviam notícias de trovoadas e barrufos por cima da terra. E novamente a enxada sulcava o chão para a semente ser derramada. Jogada para mais tarde se abrir em flor, nas flores sempre avistadas em qualquer coisa que brote e mais tarde sirva para alimentar. Assim como a melancia, o milho, a abóbora, o feijão, o maxixe, o quiabo, a macaxeira, o pé de fartura e de enchimento de barriga.
Mas foi-se um tempo de ser assim. Os anos não foram amigos nem do sertão nem do sertanejo. O tempo trouxe no calendário todo um sertão adverso ao homem da terra, ao verdadeiro sertanejo. Quando, surgidos de todo lugar, forasteiros foram chegando, levantando bandeiras e empunhando foices afiadas, nada mais se manteve como antes. Os arames foram cortados, as cercas derrubadas, as plantações destruídas, vidas e mais vidas aviltadas. E não demorou muito para que as paisagens sertanejas também se ressentissem dos efeitos das invasões. Eis que a foice afiada foi derrubando tudo que encontrava pela frente, deitando sem vida a umburana, o angico, o juazeiro. Na ânsia da fria e covarde destruição, também a morte da planta rasteira, do cacto matuto, da vegetação entranhada na mata. E sem mata bicho não vive, o passarinho não voa, nada resiste. Daí o sertão ser transformado num descampado e depois num deserto. Somente aqui e acolá que ainda resta uma catingueira. Que solitária e sempre relembrando o grandioso passado, outra coisa não faz senão chorar. Sim, catingueira chora. E lacrimeja a seiva ressequida pela selvageria humana.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

Um comentário:

Al Reiffer disse...

Não sou nordestino, mas entendo essa dor. Aqui no Sul, a tragicidade não é diferente. Parabéns pelo texto, belo é dilacerante.