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quinta-feira, 11 de agosto de 2016

SINHÔ


*Rangel Alves da Costa


Mesmo que a língua portuguesa se contente em dizer apenas que o substantivo masculino Sinhô é abreviatura da forma de tratamento Senhor, há muito mais que se reconhecer na antiga pronúncia. Não é somente uma questão de abreviar ou moldar a fala segundo a posição do outro, mas reconhecer neste uma forma especial de merecimento. Neste sentido, a expressão sinhô pode tomar uma conotação ora de respeito ora de sujeição.
Os escravos assim tratavam os seus patrões, os seus donos, enquanto os seus filhos eram chamados sinhôzinho. Também os jagunços, capatazes e dependentes dos antigos donos do poder, utilizavam tal forma de tratamento como reverência e submissão à autoridade. Talvez por uma fuga ou dificuldade de correta pronúncia, toda vez que o senhor se transformava em sinhô é porque havia algum tipo de subordinação no falar.
Ademais, mesmo sendo uma forma coloquial, informal ou popular, a expressão sinhô traz consigo muito mais relevância do que comumente se imagina. A forma de tratamento então utilizada para com os poderosos indicava não só o respeito como a reverência. Em tal contexto, envolvendo muito mais que o gentil acatamento, passava a caracterizar modos de exteriorização da subordinação e da submissão. Logo se depreende um contexto de força, de poder, de autoridade.
Certamente que o senhor coronel não exigia ser chamado de sinhô, mas sempre lhe soava bem ser assim reverenciado, pois como se a pronúncia correspondesse a uma terna aceitação de seu poder e mando. Não raramente também como gesto de filiação paternal ou de reconhecimento de sua bondosa autoridade. Logicamente que o pensamento do senhor coronel não correspondia à realidade, vez que assim era tratado não por devocionamento ou afeto, mas como pura expressão de subserviência e medo.
Eis a questão do ego coronelista. Não se contentando com o poder, com o mando, com a força autoritária e o respeito forçado, parecia-lhe muito pouco ser conhecido e tratado por nome comum: Boanerges, Cirineu, Leodegário, e por aí vai. Alguns foram buscar na patente militar, de graciosidade governamental através da Guarda Nacional, a oficialização de sua poderosa alcunha. Mas outros, de resquícios mais antigos, construíram suas patentes pela autoridade de mando e todas suas mais características expressões: clientelismo, assistencialismo, voto de cabresto, apadrinhamento, exacerbação de poder regional. E também pelo ferro e fogo sempre reservados aos subordinados e desafetos.
O mando coronelista lhe imprimia um caráter quase mítico, endeusado, heroico, ou tantas vezes assombroso e apavorante. Tais características eram urdidas desde além do alpendre do casarão até os gabinetes governamentais, a partir do comando de jagunços, capatazes, matadores, assalariados, empobrecidos, à influência perante aqueles que elegia ou que lhe devia favores nas diversas hierarquias de poder. Daí o poder alastrado pelos seus latifúndios, arredores e mais além. Daí as outorgas e os reconhecimentos, os medos e as obediências, tornando o homem num senhor absoluto: o senhor coronel dono do mundo. Ou, como gesto de maior deferência, simplesmente sinhô.
Os anais da história do poderio regional estão repletos de imponentes senhores e sinhôs. Tanto no termo cerimonial, de escrita correta, como no termo popular, suprimindo a vogal e a consoante. Os senhores de engenho, os senhores latifundiários, os senhores da política e do poder, os senhores comandando vidas e destinos de um povo tido sempre como servil. Mas também os sinhôs, de mesmos poderes, mas geralmente voltados para outros tipos de afazeres e influências, tais como o sinhô coronel, o sinhô de terra e rebanho, o sinhô dono do latifúndio e da pobreza, o sinhô do jagunço e do rifle.
Em cada sinhô se circunscreve um contexto específico na história brasileira, mas em todos o reconhecimento através da imposição de poder, que quando não absoluto forjado na bala, na valentia, na tocaia, na emboscada, pelo troco bem dado segundo a desfeita recebida. E também pela proteção recebida das altas esferas governamentais e políticas, como retribuição pelos favores eleitorais. Tal era o prestígio que mesmo os mandatários da nação não se negavam a beijar a mão estendida pelo sinhô. E endeusado perante os seus, fosse pela proteção concedida ou pelo respeito imposto a todo custo.
Sinhô Pereira, um letrado chefe de bando, primeiro chefe de Lampião, não foi propriamente coronel, mas descendente do coronelismo do Coronel Andrelino Pereira da Silva, o Barão de Pajeú. Mas outros sim, muitos outros ostentaram terno de linho de linho branco pelos feudos nordestinos: Sinhôzinho Malta, de Palmeira dos Índios; Sinhô Badaró (Francisco Fernandes Badaró), coronel do cacau. E tantos outros “Sinhô” em nomes como Chico Romão, Veremundo Soares, Horácio de Matos, Franklin Lins de Albuquerque, Douca Medrado, Anfilófio Castelo Branco, Abílio Rodrigues, Lídio Belo, João Sá, João Maria de Carvalho, Elísio Maia. Todos coronéis, todos senhores, todos “sinhô”.
E não por acaso que os filhos dos coronéis eram também chamados de sinhôzinho. E desde novinhos já paparicados, já bajulados. Só não sabiam que estavam alimentando insolentes egos e preparando açoites que depois recairiam sobre os seus próprios lombos.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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