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terça-feira, 6 de junho de 2017

OIÊ MUIÉ RENDERA, OIÊ MUIÉ RENDÁ, TU ME ENSINA A FAZÊ RENDA QUE EU TE ENSINO A “RECORDÁ”


*Rangel Alves da Costa


Calçadas de sombreados, tardes fagueiras, brisas com perfume de mato e mãos ágeis correndo pelas almofadas. No papelão cuidadosamente desenhado pelas mãos sertanejas, surge o molde que é deitado e pregado por riba do enchimento. Nele as curvas perfeitas, os caminhos, o trançado que vai ter o bordado. E quanta beleza, quanta originalidade surgida de mãos matutas, tantas vezes já envelhecidas, que nem sempre sabem escrever o próprio nome, mas que se esmeram na singela feitura da arte de um povo.
Pelas calçadas, nos silêncios da boa fresca ou mesmo entre um converseiro e outro, as mãos seguram, levantam, passeiam, transmudam e revolvem, até colocar os bilros na marcação do espinho. E espinho grande, pontudo, de mandacaru sertanejo, ali sobre a almofada para demarcar o desenho e a curva a ser percorrida no molde perfurado no papelão. Por entre os espinhos os bilros vão sendo pendurados até novamente serem procurados. Não há ofício mais belo que este, que a arte da “muié rendera” do nosso sertão.
“Muié rendera”, mulheres rendeiras de um Poço Redondo que não mais tece sua arte como antigamente. Mas onde elas estão agora? Que fim levaram aquelas mulheres e suas almofadas grandes, imensas, gordas, colocadas em cima de tamboretes e na proximidade das mãos? Onde estão aqueles bilros, aqueles moldes, onde estão aquelas almofadas de panos floridos, cheias de velhices e sempre novas? Onde estão aquelas mãos calejadas de tempo e tão hábeis nos seus ofícios? Onde estão aquelas tardes de calçadas sombreadas, aquelas tardes debaixo de pés de paus ou mesmo nas varandas e cantos de casa?
Mas saudades não somente das almofadas, dos bilros, dos moldes, daquelas mãos ágeis em pressa de fazer coisas belas, mas também daquelas senhoras e mocinhas que tantas costuras bonitas faziam. Costureiras de mão cheia, como se dizia, mas não costura de máquina, e sim na mão, na agulha, no dedal e no bastidor. Pra quem sequer se lembra mais, bastidor é a denominação sertaneja para aquele aro de madeira onde o pano era estendido e preso para ser costurado ou bordado.
De cima do bastidor, a partir de riscos previamente feitos ou pela criatividade da bordadeira, logo surgindo os pontos cruz para dar forma a toalhas, colchas e outras peças em tecidos. Das mãos dessas bordadeiras iam surgindo verdadeiras obras de arte. De Poço Redondo saíam verdadeiros carregamentos de bordados para o sul do país. Senhores como Zé Hipólito e Gabriel Feitosa mantinham verdadeiro intercâmbio comercial entre as bordadeiras sertanejas e as madamas sulistas.
Era um comércio injusto, contudo, sempre desfavorável às artistas interioranas, vez que suas belas e demoradas costuras e seus magníficos bordados saíam de suas mãos por preço muito abaixo do real valor. Ora, uma colcha de mesa bem feita, rendada, bem trabalhada no esmero e na formosura, podia levar até meses para ficar pronta. E trabalhos artesanais tão bem elaborados que vão ficando ainda mais valiosos com o passar dos anos. Ainda hoje, mesmo em Poço Redondo, as colchas de cama e toalhas antigas só saem dos armários em dias especiais ou no período da Festa de Agosto.
Mas os tempos são outros e nossas rendeiras, costureiras e bordadeiras, ou já foram tecer para o altar do Senhor ou já guardaram suas almofadas, seus bilros, seus moldes, seus bastidores, seus dedais, suas linhas, suas tesouras. Restam poucas, muito poucas, infelizmente. Dona Clotilde, uma das maiores rendeiras de todos os tempos, não possui mais sequer almofada. Outro dia, numa das visitas que sempre faço à sua residência, senti seus olhos molhados enquanto conversávamos sobre essas coisas belas. Dona Conceição de Laura, na sua beleza de todo dia, ainda mantem viva nossa tradição. Cenira também abdicou da almofada, assim como fizeram tantas outras. Dona Domingas vive sonhando com alguma jovem que bata à sua porta desejosa de aprender os segredos da almofada e dos bilros. Ainda bem que suas filhas abraçaram a arte da mãe.
Minha avô Emeliana costumava sentar-se diante de almofada. Mas nunca igual a Dona Araci, a Maria de Iaiá, a Dona Davina, a Carmosina e tantas outras. E se agora eu tivesse um lenço, queria um bem antigo, bordado à mão por uma calejada mão sertaneja: “Para usar na saudade!”.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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