SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 1 de agosto de 2018

AINDA HÁ SERTÃO NO SERTÃO



*Rangel Alves da Costa


Desde muito que venho alardeando - e de forma mais apaixonada que verdadeira - o fim daquilo que sempre foi conceituado como sertão. Nas minhas palavras, sempre temerosas, eu apontava que persistia somente o sertão histórico e parte de sua geografia. Nada mais que isso. Ora, a história não pode ser apagada e os seus passos também não, mas a geografia desde muito vem sendo totalmente descaracterizada. Somente os limites, também em parte, ainda são preservados.
E por que esta minha afirmação tão medonha e espantosa? Basta lançar um olhar no que era o sertão e o que ainda se tem hoje como sertão. Resta muito? O velho conceito diz que sertão é uma região semiárida no Nordeste brasileiro, nas distâncias interioranas, caracterizada por poucas chuvas e longos períodos de estiagem, com vegetação predominantemente cactácea. Sim, as estiagens e secas grandes continuam, a vegetação típica também, o passado histórico ainda encravado porque impossível de ser apagado, a geografia sendo modificada a cada passo. Somente isso.
Para uma ideia da tamanha transformação imposta ao sertão, tem-se que atualmente o sertão não é mais do sertanejo. As migrações, principalmente a partir do surgimento de inúmeros assentamentos e da rotineira chegada de forasteiros, foram permitindo que, atualmente, a maioria dos habitantes do sertão seja formada por pessoas deslocadas de outros estados e até de outras regiões do país. Perdeu-se, assim, o sentido da contextualização comunitária, do senso familiar entre os moradores de uma mesma povoação e a falta de interação e compartilhamento entre as pessoas.
Logicamente que as cidades e as povoações crescem e vão perdendo sua feição de familiaridade. Noutros idos, dificilmente uma pessoa passava pela rua para não ser conhecida. Era terra de compadres, de comadres, de amigos, de conhecidos, de gente proseando pelas calçadas e contando causos debaixo dos pés de pau. Quando o sino da igrejinha badalava tristonho, anunciando uma despedida, logo a comoção se estendia entre todos, pois todos conhecidos e com laços familiares estendidos em muitos sobrenomes. Hoje os sinos tocam e ficam apenas as indagações. Quem partiu?
Atualmente, com o rápido crescimento (que nem sempre vem acompanhado de desenvolvimento) as cidades e as povoações se transformaram em verdadeiros labirintos, em locais de desconhecidos e, infelizmente, de espantos. Pessoas da mesma localidade sem um bom dia ou boa tarde. Pessoas que até moram nas proximidades e não se conhecem. Pessoas que outras pessoas sequer imaginavam que por ali morassem. Tudo consequência da perda de contextualização interiorana e a sua vida mais intimista dividida entre muitos. E, muitas, entre ninguém. No somatório de tudo, sempre o aumento da violência, do medo, das práticas aterrorizantes que não eram tão comuns noutros tempos.
Alguns exemplos dizem muito bem das drásticas transformações havidas, e não apenas pelo aumento da violência e da criminalidade, principalmente pela disseminação e uso de drogas entorpecentes, mas nas mudanças de hábitos mesmo. Tornou-se raridade ouvir, ainda ao longe, a chegada de um carro-de-bois. Aquele rangido arrastado, puxado, quase não existe mais. Pelas estradas e cidades, nada mais de burros, jumentos e jegues, fazendo o transporte da subsistência. Cavalo agora só para enfeite, cavalgada ou vaquejada, pois as motos chamaram para si os relinchos e se espalham espantosamente com seus roncos enfumaçados.
Mas nem tudo está perdido. Ainda bem que nem tudo está perdido. Felizmente ainda há sertão no sertão e, não raro, mais próximo dos núcleos urbanos do que se imagina. Basta que a pessoa se disponha a caminhar um pouquinho, a sair um pouco dos centros, dos bairros e conjuntos, e logo encontrará o que resta do sertão dentro daquilo que foi sertão. Bem ali ao lado, pouca estrada adiante - mas principalmente nos escondidos das catingueiras e xiquexiques - ainda há muito sertão, ainda há o reconhecimento de que o tempo sequer parece ter passado por ali. De repente, o visitante se vê diante daquilo que somente seu idealismo bucólico sertanejo possibilitava avistar.
Não só na casinha de cipó e barro, na moradia de barro batido segurada em estaca e trançado de croá, bem como nos seus arredores de mataria e cactáceas ressequidas pelos escaldamentos do sol, mas no próprio jeito de ser e viver. Observo isso nas minhas andanças pelos sertões e pelas visitas que eu tenho feito a famílias sertanejas. Outro dia, por exemplo, cheguei perante a cancela de um velho e famoso mateiro, exímio caçador nos tempos idos, bati palmas perante a moradia à minha frente e nada de obter resposta.
Logo veio a motivação de ninguém haver respondido, ainda que gente estivesse ali. Olhei pelo lado e logo ao fundo avistei uma casinha de barro, daquelas já muito açoitada de tempo, de uma porta apenas. Ante minha chegada, logo surgiram seus moradores: um casal já envelhecido de sertanejos. Recebido com a cordialidade matuta de sempre, enquanto proseava eu olhava de lado. Galinhas ciscando ali e acolá, um purrão num canto de parede, um velho fogão de lenha, e o mais que podia dizer que ali possuía a feição daquele sertão antigo.
O motivo de não morarem na casa da frente e sim na velha casinha de trás? Não se acostumavam com casa de tijolo e cimento.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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