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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 4 de julho de 2018

ANGÚSTIA E VIDA NO VELHO CHICO



*Rangel Alves da Costa


A geografia foi generosa com Poço Redondo. Suas terras divisam de um lado com a Bahia, na Serra Negra pedro-alexandrina, e do outro com as Alagoas dos Marechais (Pão de Açúcar e Piranhas), do outro lado do Velho Chico, além dos limites sergipanos interiores. Na parte costeira ao rio, nada menos que quatro povoações fazem parte das ribeiras poço-redondenses: Bonsucesso, Curralinho, Jacaré e Cajueiro.
Uma verdadeira dádiva sagrada que as terras poço-redondenses sejam tão abençoadas pelas águas do São Francisco. Desde Bonsucesso a Cajueiro, entre serras e entre montes, em meios às margens e arenosas, eis que brotam aquelas vidas tão singelamente pacatas e tão próprias das comunidades ribeirinhas. Pacatas no sentido da simplicidade no viver, da humildade na sua gente, dos singelos costumes e das tradições que ainda insistem em permanecer. Uma verdadeira benção.
Verdade que os anos foram sendo cruéis com os ribeirinhos. Curralinho, por exemplo, de primeiro porto a importante centro comercial, aos poucos foi simplesmente empobrecendo. Quando as principais famílias se retiraram para a cidade, somente aqueles habitantes mais enraizados - e também desfavorecidos - foram ficando por lá. Uma situação diferente, contudo, das demais povoações nas vizinhanças. Como não houve nenhum apogeu em Bonsucesso, Jacaré ou Cajueiro, as mudanças foram muito menos sentidas. Em Bonsucesso até houve um sensível crescimento.
Fato peculiar nestas povoações diz respeito aos modos de ser e viver que parecem nunca mudar, principalmente com relação aos mais velhos. Também não há como mudar muito, conforme diz o visitante. A vida ribeirinha sempre foi mansa, simples, como se o povo vivesse também no passo remansoso das águas, na calma dos dias e no compasso das sortes da vida. Ali o pescador sem quase ter o pescar, ali o canoeiro sem quase ter o que remar, ali o pequeno agricultor sem quase ter o que plantar e colher ante as terras íngremes e pedregosas das ribeiras.
Noutros idos, agora tão saudosos quanto as despedidas, a povoação ribeirinha vivia na alegria das chegadas e partidas das grandes embarcações. As cadeiras eram colocadas nas calçadas altas e os olhares viajavam no vai e vem das águas e das carrancas. A todo instante despontava uma canoa de tolda, uma chata, um vapor. Uma festa ao olhar. Mas hoje, depois que o rio emagreceu e as águas perderam volume e força, colocar uma cadeira na calçada para avistar o rio é o mesmo que abrir diante de si um álbum angustiante de saudade. Como diria o velho pescador: joga rede n’água que vai lavando a mágoa!
Sim, a rede continua sendo jogada, lançada às águas, mas retornando sempre no vazio da desesperança. Cadê as piabas, os peixes miúdos e que tanta fartura se estendiam sobre as mesas? Como coisa de não acreditar, mas tantas vezes os peixes só chegam à mesa ribeirinha são-franciscana acaso trazidos das grandes barragens, aquelas mesmas que tanto engoliram suas águas. Hoje as canoas e pequenas embarcações adormecem na melancolia do cais. As redes e tarrafas servem de saudoso enfeite nas varandas e paredes das casas tristes. As calçadas altas ficam desalentadas ao entardecer. Os lenços se abrem e do rio da vida vão descendo as lágrimas.
O que resta do rio, o que resta da vida ribeirinha? Felizmente nem tudo acabou, nem tudo morreu. As lavadeiras ainda levam suas trouxas para as beiradas e lá reproduzem ofícios repassados de gerações a gerações. Lavam as roupas como suas bisavós lavavam, batem suas roupas como suas avós batiam, estendem suas roupas como suas mães estendiam. Um espetáculo maravilhoso é o das lavadeiras do Velho Chico. E na voz ainda a velha canção de uma saudade distante:

Velho, meu Velho Chico
chame Francisco pra ajudar
eu trouxe a sujeira do mundo
e só sendo do céu pra lavar...


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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