SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 7 de julho de 2018

NO SILÊNCIO DO MEMORIAL



*Rangel Alves da Costa


A noite avança. Luzes acesas. Na casa grande, espaçosa, os objetos silenciam. Retratos antigos, relíquias, imagens emolduradas, livros velhos e mais novos, pastas de documentos, originais de livros, rascunhos, pinturas, mobiliário antigo, peças históricas, arte do povo sertanejo, tudo no seu devido lugar. E um silêncio ensurdecedor.
Refiro-me ao Memorial Alcino Alves Costa, em Poço Redondo, no sertão sergipano. Um espaço histórico-cultural surgido para preservar o acervo e o legado de Alcino Alves Costa (1940-2012), sertanejo com histórico na política (prefeito em três gestões), na literatura, na pesquisa, na composição musical, na radiofonia e tantas outras artes. Apaixonado pelo sertão, Alcino deixou imensa e fundamental obra sobre a saga sertaneja e principalmente sobre o cangaço. É de sua autoria o famoso “Lampião Além da Versão – Mentiras e Mistérios de Angico”.
Na condição de filho, após sua partida terrena decidi fundar um memorial onde pudesse manter em segurança e conservação todo o seu acervo. Contudo, ao acervo originário foram sendo acrescidos muitos outros elementos que contextualizassem a história do próprio sertão. E atualmente, sempre enriquecido, tornou-se num espaço primordial para o conhecimento não só da obra e da vida de Alcino como de Poço Redondo e todo o sertão. É um local amplo, contando com sala para exposição permanente da arte local (literatura, artesanato, renda, bordado, etc.), com biblioteca, sala de palestras e reuniões, além de inúmeros objetos que vão contando a saga sertaneja.
O sertão antigo está no Memorial. Do muito que dificilmente é encontrado mesmo nas residências mais antigas, o visitante ou pesquisador poderá encontrar no Memorial. Pilão antigo, ferro antigo de engomar, máquina antiga de costura, arupemba, peneira, armas antigas, móveis antigos, cristaleira, camiseiro, baús, lavatórios, base de potes, chocalhos, ferros de marcar animais, alpercatas e rolós antigos, chapéus de couro, bules, chaleiras, oratórios, santos, malas, rádios, radiolas, discos vinis, candeeiros, almofada de renda, cestos, aiós, cabaças, pesos antigos, chaleiras, bules, quartinhas, cantis, filtros, lamparinas, rede de pescar, carro de boi, objetos de madeira e barro, imagens sacras, rosários, casas de João-de-Barro, e muito mais. E logicamente os livros, os jornais, os documentos, os originais, os manuscritos, as fotografias antigas e amareladas, enfim, tudo aquilo que contextualiza a história sertaneja.
Também no Memorial Alcino Alves Costa a vivacidade do cangaço em muitos retratos, documentos, livros, armas, pinturas e munições. Ora, o cangaço faz parte do contexto sertanejo e teve, em Poço Redondo, importante atuação. Nada menos que 34 filhos de Poço Redondo enveredaram pelos caminhos do bando de Lampião. Foi também no município, na Gruta do Angico, que  a 28 de julho de 38 o cangaço teve fim com a morte de Lampião, Maria Bonita e mais nove cangaceiros. Foi ainda nas terras poço-redondenses que a 9 de janeiro de 32 ocorreu a segunda maior batalha entre cangaceiros e volantes: O Fogo da Maranduba. Antônio Conselheiro, lá pelos idos de 1874, abriu veredas desde a beira do rio, em Curralinho, até a Serra Negra, na Bahia. Tudo em Poço Redondo, e toda a história contada também a partir do Memorial, nos seus livros, mapas e outros registros.
É neste espaço, em meio ao passado e ao presente, em meio ao saudoso e ao antigo, entre o envelhecido e para muitos já desconhecido, entre velhos retratos e relíquias históricas, em meio ao fazer de um povo e suas mais profundas raízes, que convivo como criador e criatura. Criador por que fundador e curador do espaço, criatura por que também nele convivo como se já fosse raiz da própria história. Por amor ao sertão que me vejo abraçando e envolvido por tudo aquilo que está presente entre as paredes deste que é mais que um espaço, pois a própria vida.
E é no silêncio dessa imensidão histórica e cultural, que de repente sento para dedilhar meus escritos. Enquanto a noite festeja lá fora, enquanto os sons alegram as bebidas, eu simplesmente bebo do silêncio e sacio minha fome na escrita. Ao redor apenas o passado, as relíquias, os retratos silenciosos, os escritos adormecidos ou acordados demais. E eu, dentro de mim, ouvindo vozes que somente eu consigo compreender. As vozes como lições que nunca calam.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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