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segunda-feira, 3 de setembro de 2012

BRANCO DA COR DE SANGUE: O TERNO DO CORONEL (Crônica)


                                           Rangel Alves da Costa*


Terno de linho branco, importado, tecido trazido diretamente das terras francesas. O mesmo navio que aportava por lá carregado da última safra cacaueira, voltava trazendo o luxo coronelista. Encomenda usual, costumeira, pois não havia outra cor nem tecido que servisse para vestir coronel nordestino. Nem um nem dois, mas quase todos da região cacaueira.
Mas houve um tempo em que era tudo muito diferente. Arribado de outras terras, chegado aos lugares desconhecidos somente com a roupa do corpo, um saco como mala, um alforje e um mosquetão, respingou seu suor por dentro de quatro paredes nas encruzilhadas e assim permaneceu. Uma pobreza que mais tarde se transformaria a ferro e fogo.
Depois de estabelecido, a luta pela sobrevivência. E nesse passo procurar ser o mais forte, o mais audacioso, o mais destemido. Mas sendo todos iguais, tinha de se sobrepor através da violência, da tocaia, da emboscada. Afastando os inimigos ou aqueles que dificultavam os planos, se tornava proprietário, dono de terra e mato. E mais tarde dono de gente também.
Grande parte dos coronéis da região cacaueira começou assim, fazendo da violência e do sangue jorrado a esguicho o meio de delimitar seu poder. Com as terras ao dispor, muitas vezes correndo a perder de vista, só restava desbravar a mataria para tornar o chão inóspito em cultivo – ainda que muitas vezes por dentro da mata mesmo - e mais tarde colher a riqueza através dos dourados frutos. E depois da primeira colheita do cacau a vida coronelista se estabelecia de vez.
Talvez a luta para se impor diante de tantos perigos e armadilhas, para conquistar espaço em meio a tantas feras humanas, para se firmar como poderoso e temido, tenha transformado aqueles bravos colonizadores em coronéis ignorantes, violentos, até mesmo sanguinários. Daí que o terno de impecável linho branco vivia quase sempre manchado de sangue. Não o vermelho do sangue escorrendo ou respingando, mas o vermelho das lutas inimigas que nunca cessavam de acontecer.
Mas não apenas isso. Tal qual mancha invisível, uma nódoa da mesma cor do tecido difícil de enxergar, o borrão vermelho de sangue do coronel tomava o terno inteiro, da bainha à gola. Mesmo continuando na brancura amarelada do tempo, ainda assim algumas pessoas do convívio, entre familiares, amigos do mesmo quilate, políticos e jagunços, sabiam muito bem que não havia lavagem que limpasse aquelas marcas.
Ora, a própria riqueza somente conseguida através da luta feroz, do embate entrincheirado, na emboscada, na tocaia, na traição. Terra dos homens valentes, não conseguiria sobreviver e prosperar aquele que se intimidasse diante da morte, que não apertasse o gatilho, que não se metesse nos tufos dos matos à espreita do inimigo passar. E depois deixava que os urubus fizessem a festa, vez que naquelas terras de dor e assombro ninguém se dava o direito de reclamar seus mortos.
Depois o sangue se espalhando ainda mais para manter as terras, os latifúndios, os dourados frutos que lhe garantia a riqueza, o poder sobre tudo e a descomunal influência. Mas sangue não mais do cano de sua arma, não mais do seu próprio serviço. Agora já contava com a cabroeira pronta para cumprir suas ordens, já mantinha ao redor jagunços escolhidos a dedo e com imensa folha de mortes sob encomenda.
Mas com o tempo passando, a riqueza aumentando, o poder alargando fronteiras, certamente se imaginaria que o coronel deixaria de se preocupar de vez com mortes encomendadas a jagunços e outros pistoleiros de mão certeira. Ledo engano, pois os inimigos continuam e cada vez mais poderosos. Nas disputas por terras, nos ciúmes e intrigas de toda sorte, e também nas vinditas políticas que passam a fazer parte da vida coronelista, eis que surge um novo campo de cruéis batalhas.
Coronéis encomendam a morte de coronéis, os cabras que prestam serviço a um se digladiam com os bandoleiros do outro, assim basta uma besteirinha, um pezinho de briga, pra o mundo abalar, a bala zunir, a mataria estremecer, o mundo cacaueiro começar a recontar seus mortos. É uma guerra sem fim, uma peleja tão medonha e feroz que só se iguala àquela outra de antigamente: matar pra não morrer.
E assim, quem olha para o terno de linho branco do coronel nem percebe a sua verdadeira cor. Ali o vermelho, ali a borrasca da maldita emboscada, ali o respingo jaguncista, ali a verdadeira cor do poder construído por cima de tudo e de todos. Ali o terno cor de sangue, mas também a alvura da história que não poderia ser contada de modo diferente.



Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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