SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 20 de setembro de 2012

CORONEL NATÉRIO, OU O DILACERADO CORAÇÃO (Crônica)


                                              Rangel Alves da Costa*


Não haveria nem como falar dos bens, das infinitas riquezas, das contadas e acrescidas propriedades e posses do Coronel Natério Quintiliano Titó. Esse era o nome do homem, do coronel dono do mundo, protetor da jagunçada e de tristezas e solidões infinitas.
Na varanda do casarão, bem perto da escadaria de pedra sangrantemente escrava de onde se avistava uma paisagem num misto de mato, de bicho, de plantação e colheita, depois de tirar por um instante o inseparável charuto do canto da boca, chamou um dos jagunços, aquele em quem mais confiava, e foi falando coisas de se estranhar.
Num gosto de falar nessas coisa não, mas vosmicê é feliz Tibero? Se for pessoa que conhece essa coisa chamada felicidade num precisa me dizer cuma é não. Só me diga se num for, que aí vou comparar com a minha infelicidade. Arresponda homem!...
O jagunço baixou a cabeça, matutou pra responder, então o coronel entendeu tudo. O cabra era feliz e tava com vergonha de dizer qualquer coisa. Mas o trato havia sido esse, não podia reclamar do vergonhoso silêncio do outro.
Coçou a cabeça por cima do chapéu, baforou longamente, se adiantou um pouco mais do frontal do avarandado, fez sinal pro outro lhe acompanhar e continuou na sua tristeza de dá dó, até mesmo perante os sentimentos de um jagunço, de um pistoleiro de marca maior, e que já havia tocaiado uma verdadeira boiada de desafetos. E prosseguiu:
Se sua vida vale nada, cabra veio, a minha num acrescenta um tostão, nem uma nica que só trinca no bolso. Boiada tenho demais, terra que num sei mais nem adonde chega, dinheiro de fazer escada pras nuvem. E acho que até subi nessa nuvem, nesse alto da glória e poder, do mandar e nunca ser desdito, coisa que fiz sem pensar. E o que quero agora é somente descer sem poder...
Mas coronel, o sinhozinho... Mas o dono do mundo nem deixou o outro prosseguir, continuando ele mesmo a falar, mas não sem antes tirar do bolso um pequeno cantil e tomar uma golada de uma bebida forte que sempre trazia consigo. E prosseguiu no passo da lamentação:
Vosmicê mesmo tá como prova do poder que tenho até sobre as pessoas. Quem eu quero vem se ajoelhar a meus pés, pedir perdão até pelo nada feito, implorar um clemência, beijar até minhas botas. E tudo porque exigi que fosse assim, sempre lutei pra impor uma ordem através da ignorância, da arrogância, do medo e da brutalidade. Com meus inimigos não tenho nem muito a dizer, pois suas mãos enlameadas de sangue e o cano de sua arma sempre fumaçando e ainda quente dos disparos sabe quantos já mandei por terra. Mas pruquê tudo isso, meu Deus? Agora me penitencio e pergunto pruque jamais parei pra pensar que um dia ia envelhecer e num momento como esse me penitenciar feito um cristão arrependido. E como tô cabra veio, e como tô...
Mas o senhor, meu sinhozinho, ainda tem tempo de... E o jagunço foi novamente interrompido pelo coronel dono do mundo. Se o matador tivesse oportunidade de olhar nos olhos do patrão estranhamente veria uma feição mais ruborizada, cheia de ressentimentos, e também um olhar cansado e distante, já sem o brilho voraz que era uma de suas marcas. E o impensável é que veria ainda lágrimas mansamente escorrendo, desaguando pela fronte até se espalhar pelos vastos bigodes. E com voz trêmula o homem continuou na sua palavra.
Vosmicê, bem sei, tem mulher e filhos. Tem uma famia, bem sei. Também tenho muitos filhos e netos, mas num sei se tenho famia. Agora todos eles tão na cidade grande na grã-finagem, no bem bom, gastando de minhas posse, do que consegui juntar inté agora. Mas juro que nenhum sabe o que fiz pra chegar adonde cheguei e ter o que tenho. Sabe apenas da fonte rica que tem, mas num sabe a custa de quantas bataia, quantas lutas, mortes e perseguições, tive de enfrentar pra construir esse império de nada...
Mas o senhor... E não foi adiante porque o coronel não deixou. Este prosseguiu dizendo que sabia que os seus dias estavam terminando, nada mais lhe daria felicidade. E mandou que o jagunço escolhesse o que quisesse como forma de pagamento por tudo que já havia feito, ainda que de forma tão cruel. Escolhesse porque com os outros daria o pagamento em moeda.
O jagunço disse que não queria nada não, apenas continuar ao lado do seu sinhôzinho até quando ele vivesse. Então o velho senhor dono do mundo se virou e pediu que ele trouxesse seus netinhos até ali. O cabra não entendeu nada, até pensou que tinha de ir à capital buscar a filharada do patrão. Perguntou quando poderia partir, e então o velho ensaiou um sorriso.
Que nada homem, que nada. Deixe aqueles que dizem de sangue do meu sangue por lá. Eles conhecem bem quem sou e onde vivo. Eu falo dos seus filhos, que agora quero ter como meus netos. Vá logo homem, vá logo e traga também a mulher, o cachorro, e tudo. Aqui agora será sua moradia.
Nos outros, buscava uma tardia alegria. Porém difícil demais de obter diante de tantos remorsos, arrependimentos, tristezas infinitas. Mas um dia, assim que um molecote subiu no seu colo, ele fez um carinho e sentiu contentamento de verdade. Um dos últimos gestos afetivos daquela velha pedra dilacerada.


  
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com        

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