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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 8 de setembro de 2012

A MULHER DE BARRO (Crônica)


                                                Rangel Alves da Costa*


Certamente que o homem já havia ouvido falar muito do ser humano como tendo sido criado do barro e ganhado vida depois de um sopro do criador. Quando sua religiosa esposa era viva de vez em quando falava que Adão, o primeiro homem, tinha sido feito do pó da terra tornado em argila.
Ele não sabia nem ler, jamais havia tentado juntar palavra com palavra de nenhuma passagem bíblica, nem tinha o livro sagrado no casebre onde morava, mas se soubesse certamente encontraria em Gênesis 2,7: “O Senhor Deus formou, pois, o homem do barro da terra, e inspirou-lhe nas narinas um sopro de vida e o homem se tornou um ser vivente”.
Verdade é que depois do falecimento da única companhia que tinha na vida, eis que sem filhos ou parentes na região, com quase nenhum amigo e vivendo no isolamento dos descampados, pois morador das brenhas distantes, a solidão lhe caiu como pesado e doloroso fardo.
Amanhecia e anoitecia e nada de novo acontecia que lhe trouxesse algum contentamento, alguma alegria, uma esperança por dias melhores. Já estava velho demais para o trabalho pesado, para as lides com a enxada e o enxadeco, para plantar e colher além do que o necessário à subsistência.
Sobrevivia basicamente da magra aposentadoria que recebia, pensão de velho, um quase nada. Mas sozinho não passava necessidades. O que lhe doía mesmo era a solidão, a saudade da esposa, as tantas recordações de uma vida inteira de comunhão verdadeira. E por isso mesmo chorava, se afligia de tal modo por dentro que de vez em quando implorava para seguir logo pra juntinho de sua amada.
Numa tarde em que aboiava saudoso, colhendo na ponta do dedo o tico de água que se derramava dos olhos, começou a ter uma desesperadora ideia. E dali mesmo da malhada seguiu em direção à beirada do tanque lamacento que havia por detrás de casa. Muito tempo sem chover, onde juntava alguma água agora só estava depositado o barro grosso, visguento.
Chegando à beirada, ficou por ali em pé por um longo tempo, andando de lado a outro pensativo, depois se esforçou e abaixou-se para remexer na lama com a mão. Não era mais lama, mas já um material terroso visguento, escurecido, argiloso, que com mais um pouco de terra fina por cima se transformaria em perfeito barro.
Nas cidades interioranas, quando o barro chega ao ponto, ou seja, quando o endurecimento torna-o capaz de manuseio para dar formas, as senhoras o utilizam para o fabrico artesanal de panelas, potes, moringas, tachos. Já outras pessoas preferem utilizá-lo para produzir brinquedos, bonecos, bois, figuras representativas da cultura nordestina. Mas por incrível que pudesse parecer, a intenção do homem era outra. Pretendia fazer uma mulher de barro.
A partir de então começou a ser o artesão do barro para vencer a solidão, o artífice matuto tentando dar vida ao impossível, o desesperado operário moldando a ilusão. E todo dia, logo cedinho, seguia até a beirada do tanque e voltava com um balde de barro na cabeça. Primeiro moldou uma perna e colocou num canto para secar; depois a outra perna, e assim em diante.
Uma semana após e já estava com todos os membros da mulher de barro dispostos na sala da frente. Quando a última parte secou, foi juntando cuidadosamente cada uma em seu devido lugar e depois uniu todas com a visguenta argila. Era uma visão incrível, inacreditável, mas deitada no chão estava o corpo inteiro de uma mulher. Agora bastava esperar secar o restante. E depois?
Depois de tudo seco, completo, perfeito, cuidadosamente ele a arrastou até a frente da casa, pra debaixo de um pé de umbuzeiro. Aí se esforçou o quanto pôde mas conseguiu colocá-la em pé, encostada no tronco da árvore. Colocou um banquinho ao lado e ficou sentado imaginando, dia após dia, como seria aquele sopro que dava vida ao barro.
Soprou de cima a baixo, fez vento na boca, se fez ventania no desespero. Mas nada de qualquer transformação. O barro duro continuava do mesmo jeito. Após dois meses percebeu que pequenos grãos de areia iam se desprendendo do corpo de sua mulher de barro. A cada ventania mais forte mais grãos se desprendiam e seguiam pelo ar.
Um dia, temendo que não demorasse muito para o pior acontecer, e sentindo que por mais que tentasse nenhum sopro saído de sua boca era suficiente para dar vida ao barro, desfez da mulher e transformou-a numa imensa moringa. E a água que dela bebia era tão milagrosa que viveu mais de cento e dez anos sem tristezas, lágrimas ou melancolias.

  

Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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