SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 24 de setembro de 2013

AIÓ, ALFORJE E EMBORNAL


Rangel Alves da Costa*


Não adianta pretender esquecer ou mudar. A bolsa de viagem, de caçada ou de trabalho do sertanejo sempre foi e sempre será o aió, o alforje e o embornal. Não do sertanejo tomado pelos modismos recentes e suas sacolas, pastas e mochilas requintadas, mas sim daquele que tem sua bolsa encourada e tingida de sol e suor como verdadeiro instrumento de trabalho.
Com destino à mente, ou mesmo diante de um fato inesperado e urgente, lá se vai o caboclo lançando mão de sua companheira de viagem. Envelhecida, carcomida pelo tempo, já de cor muito além do barro queimado, mas sempre firme nas suas costuras e fechamentos. Ou ainda de cipó trançado com maestria artesanal, cujo tempo vai amolecendo as tiras e nós, mas sem diminuir sua resistência.
Quando produzidas em larga escala e comercializadas pelos quatro cantos, tais mochilas sertanejas possuem a mesma serventia para o viajante, mas não a mesma durabilidade. Esta só é conseguida quando cada peça é feita artesanalmente, uma a uma, na dureza dos dias, manualmente cortadas, costuradas ou enlaçadas, segredos maiores do velho coureiro ou do enlaçador de cipós.
Depois de dias e mais dias, assim que o velho artesão dá como pronta sua encomenda, a primeira coisa que se observa é o cheiro forte no alforje ou no embornal. Aliás, todo instrumento de couro exala um cheiro intenso quando novo. Precisa, pois, ser batizado pelo sol, receber uns solavancos e sofrer as mesmas agruras sofridas pelo homem. Depois disso fica macio, de cor envernizada, humilde e singelo como o filho da terra onde terá serventia.
O mesmo ocorre com o aió, mas não pelo cheiro, e sim pelo trabalho que dá. Feito de caroá, uma planta da família das bromélias, vai surgindo do cuidadoso trabalho do artesão para cortar as folhas, retirar toda a pele e ir repuxando as longas e resistentes fibras. Quando isoladas das folhas, as fibras passam a se assemelhar muito mais a fiapos esbranquiçados, que unidos vão formando verdadeiros cordames. Do entrelaçamento dessas cordas finas é que vai surgindo o aió.
Sempre colocado num armador do canto da casa, de modo a ser logo alcançado quando já próximo da saída para o afazer cotidiano, o aió, o alforje ou o embornal passa a ter quase a mesma utilidade daqueles tão conhecidos instrumentos sertanejos. Presente no homem como o gibão, o chapéu de couro, a perneira, a taca de couro cru, a sela, o cantil. E assume tanta importância porque dentro dele estará tudo que necessitar nas horas que a fome apertar ou quiser lançar mão de um cigarro de palha, de uma espoleta ou de qualquer outra coisa de pequeno porte.  
Por mais que chamem de embornal aquela sacola de muitos bolsos e trancas que os jovens de hoje andam carregando às costas, geralmente de pano ou sintética, em nada se parece com aquele outro, obra artesanal e autenticamente sertaneja. Este é traçado no couro curtido debaixo do sol, com enfeites à moda cangaceira ou não e feito para a eternidade. Embornais passam de geração a geração e, além da história familiar, continuam carregando dentro de si as necessidades dos novos tempos.   
Tanto o aió como embornal e o alforje surgiram da necessidade de o sertanejo obter mais facilidade de alcance daqueles objetos de menor porte que faziam parte do seu cotidiano além da moradia. Por mais que levasse consigo a cartucheira, o cantil, o canivete de cinta, precisava de uma bolsa que fosse espaçosa e resistente para as durezas da lide. Bastava arrumar lá dentro a carne seca com farinha, o fumo e a garrafa de pinga, o frasco com espoleta e tudo que fosse de serventia, deitar nas costas ou no lombo do animal e seguir adiante.
Luiz Gonzaga, na música “Pau de Arara” fala de outro objeto dessa mesma família sertaneja: o matulão. Um pouco maior que os citados, a serventia desse utilitário de retirantes é descrita com precisão: “Quando eu vim do sertão, seu moço, do meu Bodocó/ A maleta era um saco e o cadeado era um nó/ Só trazia a coragem e a cara, viajando num pau de arara/ Eu penei, mas aqui cheguei/ Trouxe um triângulo no matulão/ Trouxe um gonguê no matulão/ Trouxe um zabumba dentro do matulão/ Xote, maracatu e baião, tudo isso eu trouxe no meu matulão...”.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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