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sexta-feira, 6 de setembro de 2013

CANGAÇO, UMA MEMÓRIA PERMANENTE


Rangel Alves da Costa*


Ainda que vez por outra os livros de História omitam acerca do fenômeno cangaço ou tratem com poucas ou inadequadas informações esta grandiosa gesta nordestina, outra realidade existe que permite concluir que a preocupação com o conhecimento da luta cangaceira, principalmente aquela comandada por Lampião, está cada vez mais viva e florescente. Daí a certeza de que o cangaço se tornou num fenômeno de memória permanente.
Memória permanente no sentido de ter alçado um patamar de incontestável importância na história brasileira e além fronteiras. Por mais que se deturpem as ações cangaceiras e qualifiquem os bandos como grupos de vorazes criminosos, ainda assim há de reconhecer seu primado enquanto movimento social. Os seus defensores, por outro lado, possuem motivos de sobra para buscar nas suas trilhas as aventuras quase míticas daqueles nordestinos banhados de lua e sol.
Os acontecimentos em si já são de grande significação no contexto histórico. Quando os primeiros grupos cangaceiros surgiram ainda no século XIX e percorreram as matas agrestinas até os anos 40 do século passado, ocasião em que parte do bando de Lampião foi dizimado e o cangaço passou a sobreviver apenas com o desgarrado Corisco, que morreria em 1940, daí em diante os episódios foram historicamente reconstruídos para a posteridade.
Contudo, nada fácil de acontecer assim, considerando-se principalmente que o tradicionalismo da historiografia sempre tendeu a apagar dos seus anais aquilo que não se tenha como confirmação do sentimento nativista mais enobrecedor. E o cangaço, como se sabe, gestou e trilhou como rebeldia ao poder e a dominação então existentes, ainda que bebesse dessas fontes, principalmente através do coronelismo, para sobreviver por tanto tempo.
A historiografia não conseguiu apagar nada daquele percurso de lutas, violências e sonhos impossíveis simplesmente porque o cangaço foi acolhido e preservado como uma das chamas maiores daquilo que se tem por nordestinidade. Ou seja, o próprio povo nordestino cuida de heroicizar seus conterrâneos, delimitar aquilo que seja importante como fenômeno histórico ou cultural, proporcionar a devida valorização àquilo que tenha sua identidade. Padre Cícero e Antônio Conselheiro são outros exemplos.
Tal escolha, porém, bem poderia ser diferente, pois não seria contrassenso caracterizar o cangaço como mera feição do mais vil banditismo e, por consequência, negá-lo e relegá-lo ao esquecimento. Mas não, vez que - se deseje reconhecer assim ou não - os ideais de luta cangaceira sempre foram os mesmos ideais do povo nordestino, na grande maioria padecente e sofrendo na pele, no prato e na dignidade as atrocidades impostas pelo poder, tanto político quanto econômico.
Desse modo, foram a defesa intransigente do povo nordestino e a imposição de respeito à sua história e seus personagens que sempre mantiveram o cangaço como fenômeno de grande importância e objeto continuado de pesquisas sobre suas causas, meandros e uma série de possibilidades históricas. Ademais, foi com essa busca de preservação, repasse do conhecimento e disseminação da história cangaceira, que autores nordestinos deram início a uma literatura toda voltado para a análise do fenômeno.    
Uma vez conhecido e prestigiado, tal contexto se confirmaria e ganharia pujança na historiografia nordestina e nacional. E foi pelas razões acima que permaneceu como objeto de estudo, sem esquecer as diversas análises desenvolvidas por brasilianistas e que redundaram em obras de fundamental importância para o desvendamento do banditismo social em terras brasileiras. Sobressai-se principalmente o livro “Lampião, o rei dos cangaceiros”, de Billy Jaynes Chandler, um relato biográfico do Capitão como pano de fundo para uma análise maior do cangaço.
Internamente, desde o período próximo ao fim do cangaço que começaram a surgir os primeiros estudos, baseados principalmente em livros de memórias, tendo por exemplo “Como dei cabo de Lampião”, de autoria de João Bezerra, o mesmo comandante da volante que na madrugada de 28 de julho de 38, após silenciosamente atravessar o Velho Chico, chacinaria o negligente e desprotegido bando na Gruta do Angico.
Muitos outros livros foram sendo publicados e que hoje servem de fonte primordial para outros pesquisadores, vez que escritos quase na visão da luta, do zunido dos tiros varando pessoas e mandacarus, do cheiro perfumado do suor impregnado do sangue derramado. Nesse passo, as pesquisas foram se avolumando e o cangaço indubitavelmente se tornou no fenômeno nordestino mais analisado através de publicações.
Tem-se, pois, que desde muito a saga cangaceira deixou de ser objeto de pesquisas de apenas um grupo reduzido de estudiosos para se tornar alvo de interesse geral, de pessoas cuja curiosidade acaba transformando-as em persistentes pesquisadoras. Verdade é que hoje foram criados grupos de estudos, seminários permanentes e até grupos de discussão nas redes sociais. Os fãs são cada vez mais numerosos e os eventos cangaceiristas também, não importando mais discussões pontuais sobre a feição heróica ou bandida de Lampião nem se o cangaço foi movimento social ou mero banditismo.
O cangaço em si, com suas múltiplas explicações e questionamentos, é o que mais interessa. E voltam-se avidamente em busca do seu conhecimento como se tivessem um nobre dever de também comungar com parte daqueles ideais. Principalmente hoje, quando a criminalidade abjeta parece pretender santificar Lampião.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com    

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