SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 4 de maio de 2016

PROSEADO CANGACISTA


*Rangel Alves da Costa


Sentado debaixo de pé de pau, velha tamarineira que somente o tempo há de dobrar, ouço o que um e outro tem a dizer acerca do cangaço. Sim, porque pelos sertões adentro o cangaço ainda causa acaloradas discussões e relatos apaixonados. Não por parte daquela gente que vivenciou seu instante na sola do pé ou no espanto do olhar, mas de um povo que ainda gosta de relembrar do sertão quando era o mundo de Lampião.
Impossível ser de Nossa Senhora da Conceição de Poço Redondo e não gostar de tudo que seja relacionado ao cangaço, ainda que seja para escorraçar “aqueles malvados que chegavam para revirar tudo, levar no embornal menina nova e fazer com que famílias inteiras fugissem em correria, de bater perna na bunda, e nem sentir espinho no pé nem ponta de pau lanhando tudo”.
Mas outros, mesmo não querendo assumir seu orgulho de serem do sertão cangaceiro, sempre relatam um tempo de valentia, de afeição à luta e até de defesa das ações sangrentas perpetradas contra aqueles que infernizavam o sertão: o poder político e latifundiário, a volante e o medo. Uma coisa se juntava a outra e tudo redundava numa perseguição desenfreada muito mais ao pobre homem da terra do que mesmo àqueles entrincheirados nas caatingas. Ora, era o poder quem massacrava o sertão, e não Lampião.
E vem um e diz: “Ainda recordo de Durval Rodrigues Rosa ali sentado na varanda da frente de sua casa, na Praça da Matriz. O homem sabia muito, principalmente dos acontecidos que antecederam a chacina do bando. Mesmo rapazote, naquela idade em torno dos treze anos, já compreendia tudo sobre o que se passava ao redor. Lidava com a terra, com o bicho, e também com cangaceiro. E não se pode esquecer que a Gruta do Angico ficava nas terras de sua mãe, Dona Guilhermina. E certamente Durval e seu irmão Pedro de Cândido, este mais velho, tinham pleno conhecimento de tudo o que se passava ali. Não se sabe por que Durval resolveu silenciar acerca da veracidade dos fatos. Pouco falou, mas sempre negou que seu irmão tivesse se envolvido com traição ao bando acoitado nas suas terras. Precavido em cada palavra, se manteve quase como um ausente daquela realidade. Mas sabia muito. Só abria a boca pra falar em política. Política partidária passou a ser a razão de sua vida. Foi prefeito cassado, foi prefeito novamente eleito. E elegeu também dois de seus filhos, João e Ivan. Durante muito tempo foi adversário ferrenho de Alcino Alves Costa. Era briga de fogo e sangue. Mas Alcino ganhou todas as eleições que disputou. E foram três. Depois abrandaram as diferenças, deixaram as rivalidades de lado e cada um passou a viver de relembranças das glórias e inglórias políticas. Hoje os dois já não estão mais entre nós. Durval foi primeiro, e partiu sem abrir o baú dos segredos do Angico. Alcino partiu depois, mas com uma vontade danada de ter tido mais tempo para desvendar todos os segredos daquele baú”.
E vem o outro e diz: “Outro dia Mané Félix estava aqui entre a gente. Um homem de valor como aquele não merecia ter morrido no esquecimento. Todo mundo sabe que foi o maior coiteiro já nascido por todo o sertão, tanto assim que era o mais confiado por Lampião. Recordo apenas ele, naquele tamanhão todo, caminho um tanto encurvado e lentamente nas suas poucas andanças. Não gostava da cidade, mas do mato, da beira do rio e do garrancho, e talvez por isso mesmo nunca tenha acostumado com esse chão diferente. Mais das vezes era encontrado na sua cadeira de balanço, dentro de casa, sempre de chapéu de couro à cabeça. Olhar distante, turvo, como um espelho opaco que não perde lá dentro toda a sabedoria catingueira”.
“Quanta gente importante que foi esquecida”, dizia outro. E prosseguia: “Em Poço Redondo, por muito tempo, Zé de Julião, o Cajazeira do bando de Lampião, foi um morto enterrado de vez, para o conhecimento do lugar e para a história. Ninguém ao menos sabia quem era o homem, o seu passado, sua importância histórica e política. Foi rapaz rico, foi cangaceiro, perdeu sua Enedina no fogo do Angico, depois deu pra ser empreiteiro e político. Não sofreu no cangaço nem um tantinho assim do que penou na política, através da perseguição desenfreada. Tomaram-lhe a prefeitura por duas vezes, por meio de fraude. E depois sua vida, por meio de assassinato. Foi preciso que Alcino desenterrasse a história do homem e desse ao conhecimento de todos a sua importância e seu justo reconhecimento. E através de Alcino, o cineasta Hermano Penna contou parte de sua vida num filme. E não se pode esquecer Adília. pessoa humana maravilhosa, de poucas palavras, mas acolhedora. Viveu e morreu pobre, também praticamente esquecida pelos seus conterrâneos, e morando ali no Alto de João Paulo, logo depois do riachinho que corta a cidade”.
Por isso mesmo que não me canso de ouvir tais causos, tais relatos. E tenho um embornal cheinho de coisas assim.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com 

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