SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 17 de maio de 2016

UM GOLE DE CAFÉ


*Rangel Alves da Costa


Só mesmo sorvendo um bom café para suportar o inconformado amigo repetir sobre um suposto golpe ou defender indefensáveis como se anjos fossem. Toma mais um gole, acende um cigarro e vem com ensaios verbais típicos de quem não leu outra coisa senão a cartilha vermelha. Até desconfio que deseje me engasgar quando, no exato instante que levo a xícara à boca, começa a falar das maravilhas do crescimento econômico e da bonança que vive a sociedade brasileira atual.
Tudo bem, cada um diz o que quer. É o velho Voltaire comendo o nosso juízo por respeito ao direito de expressão. Dá vontade de ir mesmo ao popular e dizer que não há cegueira maior do que aquela que não quer enxergar a realidade. Mas acabo indo de um filósofo qualquer inventado na hora: Não aceitar derrotas é acumular vitórias de ilusão. Mas chega o dia que de tanto falsamente ganhar se sente completamente derrotado. Quer novamente fingir e não pode, pois nem a ilusão lhe pertence mais.
Mas nem todo amigo tem o dom de tirar o gosto de qualquer cafezinho durante um proseado. Muitos existem - a maioria, felizmente - que conseguem temperar ainda mais o bom e saboroso café. Não há maior prazer que chegar com um velho amigo ao pé do balcão e pedir dois cafezinhos, daqueles que chegam inebriando o ambiente e fumaçando na xícara, ao modo dos antigos cafés aracajuanos e que hoje se tornaram raridades. Muitos haverão de recordar do Café Aragipe e do Café Império perfumando a Rua José do Prado Franco e arredores.
Nos cafés antigos os guardiães da memória se encontravam para cuidar da preservação verbal dos fatos e acontecimentos, mais tarde relatados em livros. Cronistas de épocas assim faziam antes de se tornarem memorialistas. Políticos e autoridades não só marcavam presenças como traçavam eleições e despachavam ali mesmo na beirada da xícara olorosa e perfumada. E que desatino quando a surpresa da fofoca fazia com que o negrume respingasse no terno de linho branco. Assim a vida nos cafés antigos e que não existem mais, restando as sombras do balcão lusitano e o gole apressado.
De qualquer modo, indescritível a importância do café, do cafezinho ou do seu gole, na vida dos povos. Tanto assim que muita gente só reconhece o dia ter começado após um trago de café. Sem o primeiro café não há disposição para nada, é como se nada ainda tivesse acontecido, sequer o dia amanhecido. Contudo, não são poucos os que apenas beijam o sabor e já estão em apressada correria para os ofícios do dia. Morde a beirada do pão, leva a xícara à boca, mas o relógio não permite um gole completo.
Sendo assim, sorte daqueles que sentam à mesa, passeiam pelo jardim de xícara à mão ou abrem a janela para avistar o mundo sempre saboreando aquele negrume quentinho e confortante. Os jornais são folheados, página a página, com gole após gole e xícara após xícara. Um cafezinho apenas ou em xícara grande, o que importa mesmo é o prazer de transformar a notícia em algo menos intragável. E somente com o café para suportar tanto desalento noticiado.
Por isso mesmo que o café se transformou em costume inafastável à maioria das pessoas. Sua falta provoca indisposição, dor de cabeça, mau humor. Basta um gole e tudo passa, tudo estará refeito. E aprecio tanto seu paladar que de vez em quanto converso com a xícara. Então, de lábios colados à borda, pronuncio em pensamento: Bom dia, café. Como vai? Certamente que ele vai bem e sempre desce bem desde as madrugadas dos meus dias.
Recordo-me de um tempo de café em grão, batido em pilão nos quintais, peneirado e depois despejado na chaleira de água fervente no fogão de lenha. O seu cheiro, seu aroma e perfume, eram de encantar, verdadeiramente apaixonar. Pelos espaços aquela fragrância forte, gorda, negra, saborosa, fascinante demais. Nos quintais e cozinhas interioranos costumava-se despertar com a festa do café pelo ar. Bastava o cheiro e já se sabia de qual chaleira vinha aquele nobre e contagiante perfume. Não raro que a vizinhança se achegava implorando um tiquinho, um golinho, um pouquinho no fundo de xícara. E o prazer da manhã estava garantido.
Os tempos são outros. Praticamente não há mais café batido em pilão de quintal, fogão de lenha e chaleira. Somente nas regiões interioranas mais distantes ainda é possível encontrar um cheiro bom e original de café. Mesmo nos sertões nordestinos, as facilidades do café em pó ou solúvel, industrializado, transformaram aquela magia do amanhecer e do entardecer num ato comum de ferver água e misturar o café.
Ainda assim, mesmo sem o encanto de outros tempos, o cafezinho continua companheiro inseparável das manhãs, das horas, dos dias. Mas nada de água quente em garrafa térmica, cafeteira ou já preparado e esperando somente ser esquentado O bom café possui um romântico ritual que não pode ser esquecido: primeiro o seu aroma, depois o seu sabor. Se houver um bom amigo por perto, com proseado daqueles que faça alegrar coração, nem precisará ser açucarado. No diálogo a doçura da vida.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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