SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 23 de setembro de 2016

LÁ LONGE...


*Rangel Alves da Costa


Lá longe há um lugar por onde já passou Jorge Amado, Rachel de Queiroz, João Ubaldo Ribeiro, Gilberto Freyre, Câmara Cascudo, Graciliano Ramos, Euclides da Cunha e tantos outros escritores, novelistas, memorialistas. No lá longe todos eles beberam na fonte antiga, nas memórias nordestinas, nos engenhos, nas casas-grandes e senzalas, no viver interiorano, nas vidas secas, nas lutas cacaueiras de tocaia e sangue, nos velhos cabarés e nas fomes tantas e nas desolações desmedidas.
Lá longe e tão perto. Agora, na realidade presente. Aquilo que os livros contaram, ora em ensaios, romances ou memórias, ainda estão, na medida da permanência, ainda presentes pelo Nordeste e seus sertões. E assim por que há uma região nordestina e muitos e diversificados sertões, desde os sertões litorâneos, quase beirando as metrópoles, aos sertões distantemente autênticos: o sertão sertanejo, de aridez e secura, de chão rachado e planta recurvada pela fome de chuva.
Ainda é possível avistar a escrita amadiana em muitos de seus recantos. Não mais os coronéis desafetos digladiando poderes sobre as terras, mas o mesmo coronelismo político, do mando e da submissão. Não há mais o terno de linho branco, mas há a mesma ordem, o mesmo exercício de poder político remoendo adversários. Os jagunços são outros, as emboscadas e tocaias também, pois a paga da maldade vem pela mão sangrenta de qualquer reles covarde. Capatazes citadinos, seguranças, bajuladores que ainda atemorizam sertões.
Mas também ainda a existência dos fazeres cotidianos tão expressivos na escrita amadiana. Ora, Jorge Amado era de escrita moleca, travessa, tão realista que impossível não avistar as cenas na sequência descritas. Cabarés e prostitutas balofas, cafetinas e apaixonados ao pé do balcão, mas também a doçura e a beleza das agrestinas de encantar corações. Eis que nas distâncias matutas tantas Gabriela, Tereza Batista, Dona Flor, Malvinas e tantas outras. As mesmas singelezas, canduras e segredos caboclos. Nem os modismos e as tentações modernas acabaram de vez com pessoas assim, ainda avistadas e reconhecidas naqueles sertões de lá longe.
Rachel de Queiroz foi lá longe ao tratar do drama da seca e dos flagelados. O seu romance O Quinze cuida exatamente do sofrimento de um povo afligido pela voraz estiagem nordestina. Situação não muito diferente daquela narrada por Graciliano Ramos em seu Vidas Secas. Neste enredo tipicamente regionalista, nordestino por essência, Fabiano se vê tomando o caminho do mundo levando a família e seu cachorro Baleia. Daí o padecimento pela pobreza e submissão, pelas vidas minguadas e opressões. As estradas secas e empoeiradas são as presenças características nas duas obras, e nas mesmas constâncias ainda hoje observadas nas distâncias sertanejas em tempos de agonias por falta de pingo d’água, da fome e da desvalia de tudo.
Em Rachel também a vertente cangaceira, pois a escritora cearense foi buscar na saga do Capitão Virgulino o mote para sua mais famosa peça teatral: Lampião. Nesta, eis novamente o Nordeste em sua pujança, só dessa vez marcado pelo banditismo, pela catingueira varada de bala, pelo medo e a perseguição. A paisagem descrita pela autora é aquela mesma ainda hoje encontrada pelas veredas e carrascais, pois o lá longe de ontem ainda continua no lá longe de agora, vez que mesmo as devastações ainda não conseguiram extinguir o retrato espinhento das entranhas matutas sertões adentro.
Eis o grito de um Sargento Getúlio vociferando contra tudo e contra todos, desde as assombrações pessoais, interiores, aos autoritarismos do poder. Em Getúlio, a voraz rudeza da indignação do homem tão bem descrita por João Ubaldo Ribeiro. Getúlio é sargento aposentado, mas antes de tudo é homem, e sujeito indignado com a própria sorte de estar fazendo um serviço a mando de liderança política, e contra um inocente desafeto. Então, enquanto o carro vai cortando as estradas de chão, ladeado pela aspereza da terra e seus tufos espinhentos, o transtornado sargento busca prestar contas de si mesmo e do mundo. E vão ecoando injustiças, opressões, medos, realidades medonhas e até sangrentas de passado e presente que chegam como terríveis fantasmas.
E aquele lá longe euclidiano, de o homem sertanejo ser antes de tudo um forte, continua aqui tão perto quanto a própria dor de Canudos, do Conselheiro e seus beatos e fanáticos. Nas entranhas da mata a guerra cega, sem fim, num mundo que a paz da fé incontida era motivo de bala e de morte. Os algozes negaram a fé daquele povo, impingindo-lhes a destruição, como até hoje se nega o direito fundamental à dignidade. Aquele pobre nordestino que tombou no Arraial e arredores é o mesmo que ainda tomba na selva civilizada. Mas por que o sertanejo, do passado e do presente, não morreu de vez? Que diga Euclides da Cunha: Por que antes de tudo é raiz da própria terra. É antes de tudo um forte.
Lá longe aquele menino de engenho, aquele negro sendo açoitado, aquele casarão e sua varanda de caldeirão e purgatório. Um tempo de lá longe tão bem descrito nos livros, mas que ainda presente nas páginas da vida vã. Quem dera que o lá longe de sofrimento já não restasse sequer em ossos. Mas de vez em quando, no tempo presente e por todo lugar, tudo com afeição de antigamente. Tudo num só percurso. Nada lá longe.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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