SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 10 de setembro de 2010

ALGUÉM NO DESERTO (Crônica)

ALGUÉM NO DESERTO

Rangel Alves da Costa*´


Aquela era uma manhã chuvosa, manhã de inverno, de trovoadas, tempestades e vendavais. Atrás dos muros os jardins sorriam felizes, na paisagem verde de tantos matizes multicoloridos. Nas praças, nos bosques e nos canteiros a natureza mostrava-se com toda sua força e plenitude, como se em nenhum instante da vida ali se fizesse outono e tudo ficasse num marrom-cinzento e as árvores e as plantas desfolhassem numa tristeza danada.
Quando levantou, fotografou o espelho e olhou para si mesmo pela última vez, o homem sabia que não podia voltar atrás na decisão tomada na noite anterior. Sabia também que tudo que iria encontrar lá fora seria de confronto ao seu momento. O meio, o mundo e o meio do mundo possuíam ares de contentamento e felicidade, pois a estação era a mais propícia para tudo renascer na vida. Mas ele não. Estava triste e pronto; não tinha nada a ver com a alegria adiante.
Com a mão trêmula, porém decidida, tocou na chave da porta, voltou a cabeça por um instante para dar a última olhada na casa onde havia morado durante tantos anos, depois bastou dar dois passos e já estava no lado de fora da porta de entrada. Deus mais uns dez passos para chegar ao portão e nem sequer olhou a pequena estátua de anjo alado que servia como guardião do jardim florido. Naquela manhã o aroma das flores parecia o cheiro dos salões iluminados para as valsas de quinze anos. Ele tinha mais de cem anos de solidão...
Cem, duzentos, quinhentos, mil anos de solidão, pouco importa o tempo se o que se sente por dentro num instante equivale a muito mais do que isso. Não conseguiu escrever um verso sequer na noite anterior; revirou baús, leu cartas, viu fotografias, ouviu Enya, tocou a lua, falou com as estrelas, fumou, bebeu, se martirizou, tentou chorar e não chorou, fez de tudo para escrever uma poesia e nenhum verso chegou. E o que significaria mais a vida, então?
E o verso não veio porque a poesia tinha seus motivos para não germinar. Ora, qual deusa, musa ou ente do Lácio se disporia a se tornar inspiração para alguém que jamais soube amar? Amar não era ver quem se ama como uma extensão do direito civil das coisas: aquisição, senhorio, detenção, posse, poder e propriedade. Amar não era impor um regime ditatorial aos sentimentos: proibições, sanções, obrigações, deveres, força, pena e castigo. Amar não era trilhar pelos caminhos sisudos da filosofia pessimista: a dor em tudo, a tristeza em tudo, a angústia em tudo, porque o nada ter é tudo.
Sufocou o amor até não ter mais nem vez nem voz para sobreviver; enlaçou-o atrás de uma cortina intransponível onde o passo seguinte por trás da cena seria a morte; à moda dos generais, mandava que os seus impulsos amordaçassem, ferissem, torturassem, cortassem os pulsos, minassem o sangue do amor. Depois se sentiu culpado e triste porque o amor não suportou e morreu. Quis ressuscitá-lo para matar novamente e não conseguiu. Agora teria que prestar contas consigo mesmo.
Por isso, abriu o portão, caminhou pelas calçadas alegres, pela manhã festiva e seguiu em direção ao deserto. Caminhou incontáveis passos, não dormiu muitas noites, cansou dias seguidos, suportou inúmeros sóis e avistou luas e mais luas, até que um dia os pés descalços começaram a arder, a boca sedenta começou a implorar, a pele começou a tostar, o corpo a fraquejar e a vida a se esvair.
No sofrimento imposto pelo deserto surgiram miragens que nada mais eram do que os atos injustos e impraticáveis cometidos contra o amor. E no instante que a terra se abria para levar os restos dos restos do homem que havia seguido até ali para expiar os erros cometidos, pagar na dor o mal praticado, eis que surge a tempestade de areia e o leva não se sabe para onde.
Acordou como se o tivessem jogado na cama naquele momento. Ainda era madrugada. Mesmo assim pegou o telefone e discou um número: "Amor, me perdoa...", disse com a voz triste.



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Um comentário:

Anônimo disse...

Bela crônica,depois de tanto sofrimento,dor,tristeza e solidão vc criou coragem,pelo jeito vc conseguio ver que o amor cabe perdão.O nada ter é tudo?O que será que lhe basta?Voce já tem a posse o poder e o regime ditatorial,pois é assim que vc sabe amar,ter alguém perto de vc submissa.Um abraço de luz...