SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 9 de setembro de 2010

SEU ERMERINDO, UM SERTANEJO

SEU ERMERINDO, UM SERTANEJO

Rangel Alves da Costa*


Bem antes que brotasse qualquer fruto na terra, que corresse pelas veredas sertanejas as ramagens do que eu conheci como família, os pais dos pais dos meus avôs já eram raízes firmes desafiando todos os sóis e todas as ervas daninhas.
Meus avôs vieram desse chão matuto, dessa raiz profunda e desse caule torto que se ajeitou pela vida. Sobrou em mim a lembrança e talvez essa feição da mais nobre madeira sertaneja que herdei daqueles que dava a benção e respeitava com temor de que me olhassem com um jeito diferente. Nenhuma palavra, e bastava o olhar para sentir o sorriso ou a reprimenda.
O nome de um era Ermerindo Alves Costa. Este era pai de meu pai, meu avô paterno como costumam dizer. Era o esposo de Dona Emeliana, que até hoje ainda está aí para não me deixar mentir. O nome do outro era Teotônio Alves China, pai da caçula da família, que era minha mãe, Maria do Perpétuo, e marido fiel de Dona Marieta, ambas vivendo ao lado de Deus nas alturas.
Seu Ermerindo não largava seu chapéu de marca boa, alto que era e de grande bigode, parecia um viking sertanejo. Praticamente analfabeto na leitura e na escrita, desde moço se tornou comerciante e sabia fazer conta de cabeça como ninguém. Bastava dizer de onde ia uma terra a outra que ele calculava na hora, quantas tarefas, quantos hectares, quantos metros quadrados, qualquer coisa da agrimensura sertaneja.
Ele mesmo tinha suas terras, as fazendas Gado Manso e Santa Rita. O Gado Manso ficava pertinho da cidade e num passo chegava lá, mas ele gostava mesmo era de cortar estrada e ir até a Santa Rita, com seu chapéu, sua sandália de couro, uma vara de catingueira na mão e sempre acompanhado pelo ou pelos seus cachorros. Era um apaixonado por cachorros, de raça, chamando os bichos pelos nomes e tendo-os sempre ao seu lado.
Gostar de tantos de cachorros se deve ao fato de que era um exímio caçador. Quando saía para caçar sertão adentro, geralmente acompanhado dos amigos Odon e Mariano, ficava dias e mais dias nos matos e voltava cheio de nambus, codornas, veados e outros animais que naqueles tempos corriam soltos pelas beiradas dos tanques e nas moitas e matarias. Naquela época, caçar em meio à grandeza de espécies nem de longe ameaçava os bichos da extinção.
De vez em quando chegavam caçadores da capital e até de outros estados, com seus carrões e luxos, mas sempre em busca de um guia seguro que garantisse uma boa e proveitosa caçada. Era um esporte apaixonante para aqueles homens de então. Muitos deles deputados, grandes empresários, latifundiários, mas sempre procurando o meu avô para o convívio com as cobras e os perigos do sertão.
Seu Ermerindo já tinha feito quase de tudo no mundo para sobreviver com a dignidade sertaneja que tanto demonstrava. Foi delegado nomeado, dono de beneficiadora de algodão e couro, comprava e estocava feijão e milho para revender aos grandes comerciantes da capital. Possuiu também mercearia, bar com bilhar e jogatina, e ele mesmo um apaixonado por jogos.
Não bebia, mas pagava com gosto pra ver o outro sujeito se embebedar e conversar besteira. Ao lado da caça e do prazer e tino para comerciar tudo que aparecesse pela frente, tinha outras paixões bonitas e melodiosas. Era um romeiro apaixonado nas estradas do Juazeiro do Padre Cícero, de onde trazia muita fé, rapadura e discos e mais discos de repentistas. Mandava contratar repentistas na região e os acolhia na sua moradia por dias a fio, fazendo-os cantar versos e desafios para uma multidão sertaneja encantada.
Um dos períodos do ano que ele mais gostava era o da semana santa. Não dizia a ninguém não, mas ficava ansioso para chegar a data. Não para comer o peixe com coco, o bacalhau e o arroz e o feijão também com coco, mas porque era por esse período que o único irmão que tinha ir fazer uma visita. Tio Dedé chegava com Dona Maria e era uma festa. Ao entardecer todos se reuniam na casa de Tio Totonho, um velho parente que morava por lá, e deitados em redes de corda fina proseavam até o anoitecer. Lembro como se fosse hoje e já tanto tempo...
Jeito de duro e intransigente, na verdade guardava dentro de si um coração grande, humano demais nas suas virtudes e sensível como o algodão ao vento sertanejo. Adorava sua família grande, imensa, e tinha prazer em ter tantos netos. No simples "Deus abençoe" que dizia poderia se extrair uma emoção inexplicável, quase um rochedo matuto querendo dizer muito mais e até chorar de emoção.
O vi chorar sim, muitas vezes, mas após um derrame tê-lo acometido e tornado novamente criança, mesmo ainda querendo demonstrar ter a dureza de sempre. Não podia ver um neto chegar perto e logo o rosto com o bigode característico começava a modificar-se de emoção e não durava muito para que uma lágrima mansamente lhe escorresse pelo rosto.
Naqueles tempos de doença, sentia-se nele a vontade de se expressar como jamais tinha feito ao longo de sua vida. Queria ser visto como bicho do mato, mas nunca deixou de ser o homem compreensivo e bondoso que se escondia atrás do sertanejo.
Quando ele se foi quis guardar comigo muitas coisas que eram dele. Talvez os discos de repentistas, talvez um ou outro chapéu, talvez alguma coisa guardada por minha avó Emeliana. Mas só guardei comigo um velho relógio de bolso para marcar o tempo que me persegue, e o sangue, e a vida, e a vida...



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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