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quinta-feira, 2 de setembro de 2010

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 94

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 94

Rangel Alves da Costa*


Ao menos após os últimos dias, o deserto de Lucas se mostrava cada vez mais imenso, inóspito, escaldante, amedrontador. Tuaregue não suportaria caminhar pela sua aridez, o Senhor suportou porque estava escrito que suportaria. Mas Lucas era homem, era qualquer tuaregue, era qualquer pessoa de pés descalços caminhando sobre brasas, era o homem comum sedento de tudo, era apenas Lucas sendo testado.
Antes de ser jogado nesse deserto sentiu que os seus alunos de repente foram rareando até sumir de vez. De uma hora pra outra e não havia mais nenhum idoso, nenhum adulto e nenhum jovem frequentando o barracão para aprender a ler e escrever, para descobrir os caminhos das palavras e das lições. Mas por quê?
Descobriram algumas dessas pessoas, jovens e até mesmo adultos e foram procurar cada um onde estivessem, avisando que se continuassem indo até o barracão ou até mesmo falando com Lucas o pior aconteceria. Poderiam apanhar, não viverem mais com nenhum instante de tranquilidade, serem perseguidos para sempre. A escolha era fácil, optando pela vida ou pelas aulas do rapaz.
Os pais dos meninos sentiram na pele o que é tentar descumprir as ordens dos poderosos, dos mandatários e mandões do lugar. O pai do menino Gildo fez vista grossa às ameaças e foi tocaiado quando voltava da roça. Homens encapuzados deram-lhe uma surra de cansanção que passou uma semana moído em cima da cama.
Glorinha, que nunca conheceu o pai, viu sua mãe ter de beber um copo de água misturado a quase meio pacote de sal. E disseram a ela que dá próxima vez iam dar veneno de rato, um tal de chumbinho. Depois disso a pobre mulher acabou tomando o tal chumbinho por conta própria, deixando a menina órfão e praticamente entregue à sorte do mundo.
Tudo isso porque foram dizer ao prefeito que na calada da noite, ou até muito antes disso, alguns dos meninos amigos de Lucas iam até o seu terreno para limpar as coisas e ajudar no que fosse preciso. Foram dizer até que se reuniam após a realização dos serviços e talvez até estivessem tramando uma coisa muito importante, como um atentado, um assassinato ou coisa muito pior, que era explicar ao povo porque não deveriam votar no prefeito e nem nos seus candidatos. Se isso acontecesse seria pior do que uma bomba atômica jogada no lugar.
Até os moradores dos arredores haviam sumido. A última vez que fizeram festa por lá foi quando foram dividir a carne das duas vacas que haviam sido mortas pelos bandidos. Depois disso sumiram e nem para pedir um pouco de sal, de açúcar e de farinha na casa de Lucas voltaram mais.
Dizem que uma viatura policial fez ronda pela localidade e depois de amedrontar com gestos e armas, escolheram aleatoriamente duas pessoas e levaram rebocadas para a delegacia. Não havia acusação nenhuma contra eles, mas apenas um recado para que transmitissem aos demais: qualquer um daquela comunidade que fosse visto ou encontrado no barracão seria preso, algemado, torturado e acusado de ter praticado desacato à autoridade.
Essa era a situação. Para salvar a pele dos pais e dos demais membros da família, os meninos não tinham outra coisa a fazer senão se afastar, ao menos enquanto durasse aquela situação, de tudo que dissesse respeito a Lucas. Paulinho mesmo jurou que se vingaria do prefeito e não duraria muito; Antonio pensou em pichar o muro da prefeitura dizendo a verdade sobre o fato. Só não o fez porque Pedrinho disse que precisavam mesmo era de planejar alguma coisa que atingisse de vez o prefeito, que ele sentisse os efeitos de alguma forma. As meninas, coitadas, choravam de se acabar. Joaninha até escreveu um bilhete para enviar para o amigo:
"Amigo Lucas, estou com muita saudade de você. Todos nós estamos, eu e os meninos. Mais do que qualquer outra pessoa você sabe os motivos da gente não está indo aí. É que se a gente for a nossa família corre perigo, mas a gente vai voltar com certeza, e logo. Paulinho manda dizer que está fazendo uma pipa bem bonita que é pra soltar e o vento levar ela pra cima de sua casa, do barracão e da praça da cruz. Quando ela chegar lembre que é a gente que está bem lá no alto junto com a pipa olhando e orando por você. Com um abraço de todos os seus amigos. Um beijo. Joana Maria dos Santos".
Mas quem levaria seu bilhete Joaninha? Quem entregaria ao amigo estas palavras simples, doces e meigas, que talvez fossem a luz de que Lucas estava precisando tanto para sair logo daquela caminhada sofrida no seu deserto?


continua...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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