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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 20 de maio de 2013

O MESTRE, O DISCÍPULO, A PAISAGEM (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Depois de caminhar léguas e léguas ao lado de seu discípulo, o velho sábio parou em cima de um monte, mirou silenciosamente a paisagem e disse: Mesmo que meus olhos não enxergassem mais, ainda assim meu coração se regozijaria diante de Deus. Vede, meu filho, como Deus abraça sua criação.
O jovem então se apressou a perguntar: Deus, Deus, mas onde está Deus? E ouviu, sem outras explicações, que estava representado em toda aquela maravilhosa paisagem logo adiante. E depois, mais pausadamente, acentuou que nada daquilo seria visível em sua plenitude se os olhos não enxergassem através do coração.
E seguiram adiante. Ao chegarem num deserto tomado de espinhos e pedras miúdas, areais e ventania, o discípulo, talvez inadvertidamente, perguntou ao mestre se conseguia avistar Deus diante daquele cenário de desolação. O velho sorriu e se expressou pela palavra bíblica: Homem de pouca fé, por que duvidaste!
Depois acrescentou: Sim, aqui também, como em todo lugar, há a presença de Deus. Outrora este deserto foi um campo florido, com pássaros voejando ao redor e flores perfumando os dias e as noites. E hoje, por estar assim ressequido e tormentoso, não significa que o mesmo jardim tenha deixado de existir. Eis, meu jovem, que neste momento Deus caminha ao nosso lado para que não padeçamos nem soframos ataques dos lobos nem dos errantes do mundo. E ao sentir sede e milagrosamente encontrar um pequeno oásis, uma pequena fonte de água límpida e cristalina, logo saberá quem mostrou ao teu olhar a fonte da abundância.
E o velho mestre continuou: Depois de caminhar por campos floridos, em meio a pomares e córregos abundantes, teríamos que encontrar este deserto. Assim está escrito. Em tudo há transformação, mudança, passagem, para que compreendamos o significado das coisas e possamos corretamente valorizá-las. E saiba que estamos diante da mesma paisagem, mesmo que esta pareça tão ressequida e difícil de caminhar. Mas tudo apenas na tua mente. Teme esta paisagem por medo de passar fome e sentir sede. Nada mais que isto. Mas tudo ilusão. O coração, diferentemente do corpo, não se contenta em ter alimento e bebida. Ele quer muito mais, principalmente fazer com que o homem valorize aquilo que se apresente ao olhar, transformando-o e dele retirando tudo aquilo que precisar. Daí que aprenda nas lições do deserto a valorizar os caminhos da vida. Depois vá matar a sede, comer teu alimento. E agradecer a Deus por ter feito jorrar aquela água ali avistada e colocar diante da tua mão aquela árvore frutífera mais adiante.
Beberam, comeram e adormeceram por cima da areia. Acordaram num tempo muito distante e, sem mais reconhecer nada daquilo que estava ao redor, pois com mato alto, bichos desconhecidos e sons estranhos nas suas entranhas, resolveram voltar. Não reconheciam mais o caminho e foram apenas seguindo em direção a um monte que se avistava ao longe. Aquele havia sido o lugar das primeiras palavras sobre a presença de Deus, pensou o velho. E por ali retornariam pelos antigos caminhos.
Ao chegarem em cima do monte, o velho sábio foi tomado de espanto com o que avistou ao redor, mais abaixo e adiante. A paisagem totalmente transformada, o que antes era verdejante estava seco e esturricado, não se avistava flores, pássaros, nenhuma cor nem uma só melodia. Sentindo que o seu mestre estava completamente pasmo, foi a vez de o jovem discípulo falar:
Talvez teus olhos embaçados já não avistem o que se mostra adiante. Teu coração, meu bom amigo, também fraqueja pela idade. Mas espero que nele ainda permaneça vívido o olhar da grandeza da vida. Tudo diferente é verdade, mas é quando consigo verdadeiramente encontrar a presença de Deus. Teu coração continua com forças para esta certeza. Do meu me chegam palavras de alegria e contentamento por tudo que vejo e sinto nesta paisagem. A aridez e a sequidão, a desolação e os caminhos empoeirados, são sinais de renascimento, de ressurreição. Assim viu Jesus o deserto da Galiléia. Aquela paisagem estéril e medonha anunciava a vitória sobre o inimigo e a prevalência do bem para o sopro divino sobre os lírios dos campos. Eis que a beleza da vida é paisagem constante naqueles que acreditam em Deus.
  

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com   

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