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quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

MEMÓRIAS TRISTES DE VEREMUNDA


Rangel Alves da Costa*


Quando Macondo foi engolida pela selva verde, que depois vomitou um monstro de cimento e ferro, ainda assim Veremunda encontrou um cantinho para retornar. Talvez uma volta ao lar distante, aquele das ilusões encantadas, pois até juravam ser ela da mesma linhagem dos Buendía.
Mas ela sempre negava. Aliás, Veremunda sempre negava tudo. De tanto negar, de tanto apagar os passos e renegar os caminhos, parecia mais um ser sem passado, sem história, sem recordações. Mas quem realmente seria essa mulher sem idade certa, maltratada pelo tempo, mas com feições ainda relembrando uma bela mulher?
Apenas uma velha rampeira, sempre foi assim. Desde mocinha novinha que já se dizia uma velha rampeira, e assim pela fecunda função exercida: abrir as pernas para macho, para qualquer um que pagasse tostão pelo falso desejo. Certa feita, depois de mais gole de rum, disse a uma de igual destino que toda vez que abria a porta do quarto era como se avistasse uma fila de homens dando voltas ao mundo. E todos esperando sua vez de trepar.
Ela, quando jovem e mesmo de mais idade, cabia muito bem nas descrições feitas por Jorge Amado acerca das prostitutas de casebres de beira de estrada e daquelas cheirando a lavanda pelos Bataclãs da vida. Um dia, de pele dourada, lábio sedoso, quase menina de brincar de boneca, foi jogada ao capim e possuída pelo Coronel Querêncio. E depois o capataz, o jagunço e qualquer um que desejasse carne nova. Assim se fez quenga.
Fugiu da fazenda do coronel e foi bater às portas da cidade. E logo sentiu que cidade é lugar que não respeita ninguém, principalmente mocinha que chega carregando mala com quase nada por dentro. Quando três portas se abriram e se fecharam negando emprego de cozinheira, então resolveu bater em outra porta. Faminta, desesperançada, foi andando e andando até avistar o que lhe pareceu um bordel. E era mesmo.
Bonita como era, começou a fazer a festa de muita gente, de muito coronel, de muito político e gente poderosa. Mas também de outros que nada lhe prometiam. Jamais se esqueceu de quando o jovem escrivão, tomado de paixão, enviou-lhe uma carroça repleta de flores e uma caixa de alfazema. Já estava acostumada com perfume francês, mas assim mesmo aceitou. Mas errou ao não corresponder aos rogos do jovem rapaz. Negando-o, negou-lhe a vida, pois o mesmo se matou ali mesmo no cabaré, e bem aos seus pés, depois de implorar ajoelhado um instante de sexo e prazer.
Quanto sentimento de culpa depois disso. Saiu pelo mundo em busca de esquecer aquele sangue espargindo sobre sua pele, sobre sua roupa. E desde então possuída por fantasmas e monstros, abrir as pernas pra macho era um tanto faz, um exercício extremo de indiferença. E de cabaré em cabaré, de cidade em cidade, a jovem prostituta foi se transformando naquela feição de triste percurso: puta, quenga, rampeira. Ou apenas uma velha errante na ilusão da existência.
Hoje acende o cigarro e baixa a cabeça, tristonha, pensativa. Tanto faz uma dose como um copo cheio. A aguardente barata já não lhe faz efeito. Traz dentro de si um álcool mais forte e mais inebriante: o passado. Por isso não fala sobre ele, se nega a relembrar qualquer coisa de sua estrada. Também quase não há com quem falar sobre qualquer coisa. Quase no meio do mato, num casebre de pouca visita, diz que ali haverá de ser escrito na cruz rústica como epitáfio: Veremunda, que um dia foi amada e nunca amou.
E tem um estranho hábito. De vez em quando, naqueles instantes do entardecer de olhos molhados, aparece com um trapo de pano e começa a beijar. E nas suas narinas o sangue ainda respingado, morto, envelhecido, mas tão vivo e pulsante como aquele um dia jorrado no caberá, a seus pés. De um amor que nunca quis amar. Mas de um amor que agora tanto queria ter.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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