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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

O MUNDO DELES NO MUNDO NOSSO (OU COMO A GLOBO SE APODEROU DO SERTÃO)


Rangel Alves da Costa*


Costumeiramente a Rede Globo de Televisão recorre ao sertão nordestino para garantir um produto de boa aceitação nos seus folhetins, minisséries e reportagens. As paisagens, os cenários, os costumes e as tradições sertanejas, sempre provocam fascínio no telespectador. O mundo rural, matuto e simples, mas pujante e sedutor, em contraste com a mesmice urbana de socialites e desajustados, torna a produção televisiva muito mais acessível às camadas sociais que tanto se reconhecem naquelas imagens e tramas.
Por isso mesmo - e mais uma vez - a Globo vai buscar no Rio São Francisco e suas veias que se espalham e adentram os sertões nordestinos, com seus personagens ribeirinhos, lendas e histórias, o principal mote de sua superprodução programada para ir ao ar após a atual novela das oito (nove, ou mais...). Acaso se mantenha fiel à riqueza histórica da região, certamente que a trama irá ser de sucesso absoluto. Tenha-se, por exemplo, Cordel Encantado, que explorou apenas uma parte da saga nordestina e ainda assim teve imensa aceitação.
Intitulada Velho Chico, a novela - que passará por quatro gerações - traz como trama a saga de amor sertaneja marcada por uma intensa rivalidade familiar à beira do Rio São Francisco, a partir da fictícia Grotas do São Francisco. O que se terá, então, ao menos na sua vertente nordestina, serão famílias rivais, amores proibidos, mocinhos e jagunços galopando pelos carrascais espinhentos, donzelas suspirando, velhos coronéis comandando vidas de seus casarões, enquanto o destino vai cuidando de tudo resolver, ou embaralhar ainda mais.
O sertão sergipano sempre esteve sob as câmaras cinematográficas e televisivas. Canindé do São Francisco recebeu locações de Cordel Encantado e de diversos documentários retratando suas belezas naturais. O Cânion de Xingó e a paisagem exuberante ladeando os montes até se molhar nas águas do velho rio são motivos suficientes para as escolhas. Com menos suntuosidades paisagísticas, porém com mais riqueza histórica e mais autenticidade sertaneja, logo vem Poço Redondo, localidade que já serviu de cenário a muitas produções.
Poço Redondo foi cenário, em 1975 e 1976, respectivamente, dos cinedocumentários O Último Dia de Lampião (de Maurice Capovilla) e A Mulher no Cangaço (de Hermano Penna), ambos para o Globo Repórter, e do premiado filme Sargento Getúlio. Pelos idos de 1977, Penna retornou com grande equipe para as filmagens da película baseada na obra homônima de João Ubaldo Ribeiro. Sargento Getúlio, porém, somente seria lançado em 1985 e é tido como um marco de cinematografia nacional. Pelos idos de 2010, o mesmo cineasta retoma Poço Redondo para contar a história do ex-cangaceiro Zé Olímpio, filme baseado em fatos reais e que recebeu o título de Aos Ventos que Virão, lançado em 2014.
Ao menos em Poço Redondo, as equipes que ali chegaram - desde diretores, produtores, atores, técnicos a ajudantes - sempre mantiveram um bom e cordial relacionamento com a população, tecendo mesmo laços de amizades. Durante as filmagens de Sargento Getúlio, por exemplo, Lima Duarte brincava e conversava com todo mundo, sem distinção. Tomava sua cachacinha nos botequins e proseava como um velho sertanejo debaixo de pé de pau. Os atores de Aos ventos que virão também sempre se mostraram muito acessíveis, tendo Luis Miranda como verdadeiro brincalhão. O próprio Hermano Penna afirma que tem aquela povoação sertaneja como verdadeiro lar.
Contudo, muito diferente ocorreu durante os poucos dias em que a superprodução global chegou às margens ribeirinhas de Curralinho, nas proximidades da sede municipal. Nos dois dias de filmagens, o que se observou foi um verdadeiro apossamento de toda a povoação, como se aquele rincão não fosse sequer do seu povo, mas apenas da Globo. As ruas do pequeno povoado estavam tomadas por seguranças, vigilantes e até pela polícia estadual. Ruas fechadas, pessoas estranhas apontando aonde veículos e pessoas poderiam seguir. Da rua da frente em diante, defronte ao rio, então é que o nativo ou visitante era submetido às proibições mais severas: nada do rio e seus arredores eram mais do sertanejo. Alguém chegou a perguntar se havia alguma ordem judicial.
Para uma ideia maior do acontecido, os bares na areia estavam sob ordens da Globo. Portanto, não havia cerveja, peixe assado, tira-gosto, nada. Toda a margem até adiante do rio também estava sob o comando da Globo. Assim, ninguém podia se aproximar, deitar sob o sol ou tomar banho de rio. Aliás, todos os barcos ali presentes estavam a serviço da poderosa. Há de crer-se, então, que até as águas do rio estavam submetidas ao império global. Passavam mansamente porque a Globo assim queria.
Logicamente que não se poderia obter as melhores filmagens sem os cuidados necessários. Nenhuma crítica às providências tomadas para que a população e visitantes não atrapalhassem o desenvolvimento das cenas. Tratando-se de produção global, realmente prima-se pela qualidade. Contudo, inaceitável que todos aqueles envolvidos se comportassem como se estivessem numa terra de mando deles, onde os sertanejos eram meros e indesejados forasteiros. E, portanto, tratados com a máxima indiferença.
Era um mundo somente deles no mundo que não era mais nosso. E enquanto o grande Lima Duarte, naqueles idos, proseava com um e outro, Rodrigo Santoro mantinha segurança na porta da casa onde se abrigava. Garanto que o Velho Chico entristeceu.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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