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quarta-feira, 4 de abril de 2018

LINGUAGEM E ESCRITA, OU ENGULA OU VOMITE A HIPOCRISIA



*Rangel Alves da Costa


Quando João Guimarães Rosa transformou sua literatura na fala do povo comum, expondo a inteireza do falar regional do povo e, consequentemente, afastando de sua escrita todo o conservadorismo mofento e enfadonho da língua, os acadêmicos e os críticos tiveram que engolir a seco as proezas do grande mestre mineiro, autor, dentre outros, de Grande Sertão: Veredas, Corpo de Baile e Sagarana.
Quando Jorge Amado descreveu em suas obras os submundos e os cheiros putrefatos dos cabarés, dando nome aos “xibius” e às “bucetas”, ninguém teve coragem de dizer que o grande escritor baiano estava produzindo uma literatura pecaminosa ou depravada. Nas páginas de Gabriela, Terras do Sem Fim, São Jorge dos Ilhéus e Tocaia Grande, por exemplo, dá pra se sentir o cheiro encardido das putas amadianas. Todo mundo teve que aceitar caladinho.
Quando João Ubaldo Ribeiro coloca mil palavrões na boca do indignado e até insano Sargento Getúlio, num linguajar tão realista que ecoa como gritos de ódio, ninguém teve coragem de dizer que o escritor havia extrapolado na voz de seu principal personagem. “Poder um caralho, vá tomar no cu o sistema e seus poderes...”.
Quando Nélson Rodrigues detalha em pormenores as traições e as hipocrisias humanas, relatando a vida como ela é, sem floreios nem meias-palavras, ainda assim nenhum sabichão se levantou contra as propensões libertinas humanas. Sabia que era tudo verdade.
Quando Júlio Ribeiro publicou A Carne quase o mundo desaba. Mas não desabou não e hoje sua obra se constitui numa marco da literatura nacional. Quando um grande escritor dá nome aos bois, diz tudo sem rodeios e até exagera no palavreado, certamente provoca um desacerto mental e moral nos sabichões, acadêmicos e supostos donos da língua.
Ah, talvez os puritanos nunca tivessem lido autores franceses que tiram a roupa dos personagens e os fazem gemer e gozar. Talvez os exacerbados conservadores nunca tivessem lido o realismo dos esgotos, das favelas, dos lixões. Talvez o poema O Bicho, de Manoel Bandeira, fosse acintoso demais.
Querem criticar e têm que calar, querem falar mal e têm que colocar o rabinho entre as pernas. Ora, acredito piamente que se alguém aqui escrever uma frase aos moldes de João Guimarães Rosa, logo irão dizer que é analfabeto, que não sabe nada de português, que nunca passou na porta de uma escola.
Criticam a pessoa comum, jogam pedras na pessoa comum, zombam de sua pouca escrita, mas calam perante “os nomes”. Quanta besteira, meu Deus. Já disse Celso Pedro Luft que língua é liberdade. E tal liberdade implica em comunicar-se sem amarras nem grilhões.
Isso mesmo, a liberdade da língua e da comunicação implica em dizer como sabe e como pode dizer, sem passar pelo crivo da dita “inteligência”. Todo mundo, pois, deve ter a liberdade de escrever como quiser e como souber. O resto é querer ser metido a besta, apenas isso.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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