SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 12 de março de 2017

BANZO D’ALMA NEGRA


*Rangel Alves da Costa


Banzo d’alma negra distante da terra. Banzo d’alma negra pelos laços partidos com as raízes. Banzo d’alma negra pelo mundo imposto que não é o seu. Banzo d’alma negra como punhalada ferindo as entranhas.
Banzo d’alma negra desde que foi laçado feito bicho e jogado em navio para nunca mais retornar. Banzo d’alma negra pelas correntes, grilhões e laços apertados, ferindo a dignidade e o viver de além. Banzo d’alma negra pela alma dilacerada de sofrimento e dor.
Banzo que se entranha e se desentranha, que irrompe do espírito para desacreditar o mundo. Banzo que ecoa no olhar e na face crispada o incompreensível sentido da vida. Banzo que se nega a aceitar a realidade e prefere sofrer pelo que restou do passado.
No dialeto escravo, no mundo negro da escravidão, por banzo se traduz a dor da alma, a melancolia, a tristeza pela saudade, a nostalgia dilacerando tudo, uma profunda depressão pela ausência da terra, do berço familiar, da raiz amada. Banzo é o grito aflito no mais íntimo do ser.
Banzo era o profundo sentimento de melancolia suportado – ou não – pelo negro escravizado e retirado à força de sua aldeia africana. Banzo é o entristecimento profundo, a nostalgia devastadora, quando já noutras terras o negro se sentia dizimado pela distância. Banzo é a saudade de um tempo em que ainda se reconhecia como gente.
Em estado de banzo, o negro se afastava de tudo. Não queria comer, não queria beber, não queria falar, não queria sequer viver. Atônito, amargurado, aflito, de olhos petrificados na dor, era como se nada mais lhe restasse senão sofrer assim até morrer, até definhar de vez. Nada mais existia que lhe trouxesse qualquer significação.
Em muitas situações, o banzo provocava tamanhas consequências nos negros escravizados que estes, quando tomados de profunda e nostálgica melancolia, simplesmente se negavam a continuar vivendo. Daí serem frequentes os suicídios entre as populações escravas. Morriam de tristeza, de saudade, de angústia pela distância do berço de nascimento.
Ora, o que viria à mente humana tornada escrava e sendo forçada a viver nas distâncias, suportando todo tipo de sofrimento, sendo tratada como bicho asqueroso? O que pensaria esse ser humano retirado à força de sua aldeia, acorrentado, jogado em navio negreiro, e depois vendido em mercado como reles objeto?
Pela dentição – pois quanto mais brancos e fortes os dentes mais valorizado era o escravo – pagava-se um valor, pela estatura e porte físico pagava-se outro valor, pela etnia ou origem pagava-se outro valor, pela situação de ser homem, mulher ou criança, pagava-se outro valor. Contudo, pagava-se não pelo ser humano, mas pela serventia que o negro teria nos afazeres do engenho, da casa-grande, da propriedade, do tudo a que fosse destinado.
Que terrível dor ser apanhado feito bicho entre os seus, no meio de sua aldeia, e simplesmente acorrentado. E saber que nunca mais ali retornaria. Quando jogado em navio negreiro, na podridão desumana, em meio a terríveis maus-tratos, preso pelas mãos e pés, então o banzo começava a rebuscar sua condição humana. Daí toda a dor do mundo. E igualmente quando já vendido como escravo e lançado nas agruras do mundo.
No navio negreiro, no pesadelo remansoso das águas, quanto mais se distanciava mais lhe apertava a saudade. E mais distantes os parentes, os filhos, os amigos, a aldeia, o casebre, a terra, o fruto da terra, a lua e o sol de África. Acima de sua cabeça já não voará o grande pássaro. A comida de fogo de chão jamais será servida em prato de barro. A língua de seu povo se perderá em mil vozes aflitas.
E assim para a eternidade. Nunca mais retornar ao lar de um dia. Tornar-se escravo é também suportar a mesma condição de bicho de canga. No tronco apenas a dor da chibata, mas no coração a dor maior: a saudade sem fim. O banzo.


Escritor
Membro da Academia de Letras de Aracaju
blograngel-sertao.blogspot.com

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