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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 8 de março de 2017

POÇO REDONDO E O TEMPO DE SAUDADE


*Rangel Alves da Costa


Somente hoje é possível perceber quanta saudade há na vida de Poço Redondo. E quando se fala em vida da povoação sertaneja, logicamente que tudo se remete aos filhos nascidos de suas entranhas e tantos outros que chegaram e abraçaram a terra como seu amado leito.
Os de mais idade, ou os mais velhos, como prefiram chamar, possuem a graça de sentir no coração um Poço Redondo cheio de saudades. Nostalgias das meiguices e singelezas dos tempos idos, lembranças de pessoas e seus afetos, memórias de um viver mais humilde e muito mais feliz.
Saudades dos que partiram e deixaram tantos retratos nos corações. Os pais de meus pais não estão mais aqui, meus pais também já não estão mais aqui. E quantos amigos e amigas eu já perdi nesse chamado incompreendido de Deus? Mas um dia eu chorei não apenas por pessoas, mas também por tudo aquilo que guardava certeza que jamais avistaria no meu Poço Redondo novamente.
Até agora não consigo compreender o porquê de levarem ao chão aquela bela casa onde toda tarde minha avó Mãeta se sentava à calçada para abençoar todos que passavam: “Deus abençoe, meu fio!”. “Tá reno meu fio, tá reno...”, ela dizia quando eu chegava todo estropiado de brincar de pés descalços. E depois me fazia um inesquecível cafuné.
Meu avô China (Teotônio Alves China) não fazia nada na vida se não fosse com a ajuda de Brucuté. Era Brucuté pra cá, Brucuté pra lá, tanto chamava por Brucuté que Divá se fez como um neto que ele tanto gostava. Já Bel praticamente vivia na casa de Mãeta, outra irmã de Divá que também era tida como neta querida por minha avó.
A casa de Mãeta só sossegava quando meu tio Jorge - advogado e militar vivente em Salvador - aparecia. Exigente que só ele, cheio de mandonices e regramentos, o Dr. Jorge Alves Sobrinho não gostava muito de menino não. Seu contentamento era repleto quando a casa se enchia de pessoas para admirar seu terno todo branco e sua vitrola com canções de Roberto Carlos. E de vez em quando metia a mão no bolso para agradecer a visita.
Certamente tio Jorge mandaria fechar todas as portas se alguém chegasse correndo para dizer que a vaca braba ao invés de ir para o matadouro havia se desgarrado e ameaçava entrar na casa que encontrasse aberta. Era um deus nos acuda mesmo. Ao entardecer dos sábados, sempre uma vaca enlouquecida pelo meio da rua e o povo em polvorosa temendo acontecer o pior. É que o curral do açougue ficava nas imediações da atual Av. João Maria de Carvalho e o gado chegava tangido quase pelo meio da rua.
Também um pouco antes da referida avenida ficava um quintal grande de Zé de Lola, mais se afeiçoando a verdadeiro pasto. Foi neste local que pela primeira vez Tonho Doido foi avistado. Moreno alto, esbelto, dentes brancos e fortes (mordia pedra de arrancar o tampo), surgiu pela estrada e acabou fincando moradia em Poço Redondo. Vindo do Timbó, segundo ele, logo foi acolhido por muitos, mas também judiado demais por outros. Não demorou muito e seu corpo foi tomado de feridas pelos maus-tratos de alguns desocupados.
De fala mansa, na calma dos bons, o sofrimento inicial de Tonho Doido foi logo sendo revertido em total acolhimento por grande parte da população, principalmente moradoras da Rua Deoclides Lucas, que providenciaram uma pequena moradia para o visitante de terras desconhecidas. Tonho passou a ter onde dormir e viver, não lhe faltando comida e bebida. Tentaram até arranjar-lhe uma companheira. Mas a moreninha Nalvinha talvez fosse ainda mais doida que Tonho. E a verdade é que os dois doidos não deram muito certo não.
Tonho Doido ainda teria o acolhimento garantido até a velhice, acaso a maldade não encurtasse os seus dias. Com sede, pediu água e deram-lhe gasolina ou querosene. Foi definhando até morrer no dia 05 de julho de 1980. Seu tempo de Poço Redondo foi de exatamente sete anos. Foi levado ao túmulo com a dignidade das pessoas de bem. Tudo mundo pra ele era “Nem”. Certamente que foi pranteado e deixou imensa família de coração.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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