*Rangel Alves da Costa
Preciosas são as imortais velharias. Apenas
para alguns, logicamente. A maioria das pessoas foge de tudo que seja antigo,
ainda que relíquia ou algo valioso demais para ser desprezado. Com relação aos
livros então. Raramente um livro novo é lido, folheado, amado, quanto mais um
que tenha cinquenta anos ou mais. Coisa velha, coisa do passado, dizem. Não
sabem, contudo, que nas letras antigas há uma sabedoria eterna e sempre
presente.
De vez em quando gosto de ir visitar algumas
imortais velharias. Vou ao mercado, subo ladeira, caminho pelos arredores do
centro ou distancio-me ainda mais somente para visitar, conversar, prosear, folhear
e me apaixonar ainda mais pelos livros antigos. Sim, prazer imenso em
reencontrar as páginas já amareladas de um Garcia Márquez, de um Érico
Veríssimo, de um João do Rio, de um Machado de Assis, de um Proust, de um Poe,
de um Tagore. Sim, também Jorge Amado, Florbela, Sommerset Maugham, Exupéry,
Walt Whitman, dentre tantos outros.
Nos sebos ainda existentes pela cidade, os
possíveis e inusitados reencontros. Ora, não é toda hora que um Voltaire chega
com cheiro de outros tempos, que um Dante ressurge das cinzas, que um José
Mauro de Vasconcelos aparece com suas páginas ainda cheirando a pé de laranja
lima. Aquele Drummond mais antigo, aquela Cecília Meireles primeira, aquele
José Lins do Rego exalando o cheiro da bagaceira e do suor do engenho. Outro
dia encontrei uma edição bonita de A Boa Terra, de Pearl S. Buck, também
Hermann Melville e Harriet Beecher Stowe. Nas mãos, A Cabana do Pai Tomás e sua
história tão bela e tão dolorosa.
Além desses, há outros clássicos da
literatura mundial que, embora raramente, de vez em quando há a sorte grande de
avistá-los escondidinhos pelos cantos das estantes ou mesmo nas caixas
empoeiradas e baús compartilhados de traças. Talvez um Balzac, algum dos Dumas,
um Charles Dickens, um Nietzsche, um Schopenhauer, um Kafka. Delicioso prazer
em folhear um João Guimarães Rosa, seja numa página de Grande Sertão: Veredas,
Sagarana ou Corpo de Baile. E encontrar Riobaldo e Diadorim em seu amor
proibido.
Na minha estante já estão muitos moradores do
meu Nordeste. De vez em quando folheio e releio Graciliano, João Ubaldo,
Gilberto Freyre, Cascudo, Nertan Macêdo, João Cabral, Rachel de Queiroz, Tobias
Barreto, dentre muitos outros. Contudo, realmente não sei o que acontece, mas o
encantamento nunca é o mesmo quando o autor é encontrado pelos sebos da vida. É
como se o inesperado acontecesse, como se um amigo muito distante de repente
fosse avistado tomando um cafezinho numa mesa de canto.
Os autores não precisam ser de um passado tão
distante que não se tenha como raridades. A raridade está na edição primorosa,
na integralidade da obra, no seu conteúdo, na boa tradução, mas também pelo
aspecto antigo que o livro passa a ter depois de alguns anos. Naquele amarelado
cinzento, entre folhas já fragilizadas pelo tempo ou pelo uso, todo o
encantamento e magia que se deseja sempre ter. Nas mãos, um mundo. Nas mãos,
cavaleiros errantes, servidões humanas, tragédias e risos, amores
desencontrados e reencontrados. Avista-se um moinho de vento, a bagaceira do
engenho, o menino falando com seu pé de laranja lima, o olhar perverso da
traição.
Os autores já partiram noutro romance do
além, mas suas obras continuam permitindo os reencontros e as visitações. Mas
os livros também partem de repente. Os bons livros escasseiam pelas traças,
pelos descuidos, pelo mau uso. Daí se tornarem raridades aqueles que persistem
em sobreviver sob os cuidados de um guardião da memória, nas bibliotecas
públicas ou particulares, mas principalmente nos escondidos daqueles leitores
mais apaixonados. Não raro, contudo, vão parar no lixo numa descuidada faxina.
A salvação é quando encontram o caminho dos sebos, das casas das imortais
velharias.
Os sebos se constituem em verdadeiros templos
da arqueologia literária. Nem tudo que se encontra espalhado possui serventia,
mas a exploração com afinco e persistência sempre revelará importantes e
indescritíveis achados. Neles, os arqueólogos das letras ou os exploradores da
boa escrita, lançam a pá do olhar logo no formato da brochura, na sua idade, no
seu aspecto de preservação. Em seguida, logo cuidam de encontrar o nome da obra
e seu autor. E é assim que surge uma raridade do Padre Antônio Vieira, um
tratado filosófico, um Virgílio ou um Marco Aurélio. E já na posse do inusitado
tão desejado, o leitor logo se confessa amigo daquela obra e diz que enfim
encontrou aquele autor.
E assim por que os sebos não são apenas
lugares onde livros antigos podem ser encontrados e comprados. Não. Os sebos
são como as casas de inacessíveis ou distantes amigos, mas que de repente
aparecem à janela com um sorriso, mesmo que já envelhecido. Os sebos são,
assim, os bancos de praças onde os velhos se assentam despercebidos à espera de
alguém que lhes reconheça. E que sente ao seu lado para o diálogo, para a
relembrança, para o prazer da presença.
Coisa de três ou quatro dias atrás, entrei
num desses sebos e quase não saio mais. Meu olhar se perdia pelas estantes,
pelas caixas, pelos livros amontoados pelos cantos. Uma vontade danada de levar
comigo dez, vinte, trinta livros. Separei apenas três: uma edição de Cem Anos
de Solidão, de Garcia Márquez, e dois volumes de Lampião, Seu Tempo e Seu Reinado,
de Frederico Bezerra Maciel. Paguei quase nada. O preço maior foi a despedida,
o adeus àqueles velhos e queridos amigos.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário