SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 26 de abril de 2020

SERTÕES, ROÇAS E VIDAS



*Rangel Alves da Costa


No passado sertanejo, de canto a outro a mataria fechada tomava conta de tudo. Depois, com o povoamento, muita mata foi derrubada para que os roçados permitissem a plantação. O plantio garante a sobrevivência de muita gente. Daí que as roças ainda fazem parte da paisagem logo depois da cidade.
Roças que se estendem pelas beiradas das estradas, cortando veredas, adentrando a caatinga. Roças maiores, roças menores, casinhas, casebres, casas de tijolo e barro, currais, chiqueiros, terreiros de galinhas, pastagens para a sobrevivência dos bichos.
As roças, ou o viver em propriedades interioranas - ou mesmo em fazendas, como costumeiramente se chama -, possuem um cheiro próprio. Não só o cheiro de mato, da terra sertão, mas um aroma tão próprio quanto suas paisagens. Cheiro de bicho misturado ao estrume. Cheiro de curral e de boi berrando.
Também o cheiro do barrufo subindo após a primeira chuva forte caída. Cheiro de sequidão, de fogaréu tomando tudo, alastrando calor e mormaço pelas suas distâncias. Mas também o cheiro da panela no fogo e o que o de comer de cada dia passa a exalar. E que cheiro de amanhecer: o perfume bom do mato em flor.
A roça tem cheiro de tudo de bom. Mas só quem vive na roça ou nela possui cancela ou porteira de entrada, para reconhecer cada cheiro. O café não apenas o café cheirando, o cuscuz no é apenas o cuscuz cheirando, a tripa na banha de porco não é apenas a tripa na banha de porco cheirando. Há uma magia em cada aroma que só sabe sentir aquele que com a roça convive.
Mas a roça é mesmo um mundo estranho. E muito estranho mesmo ao forasteiro ou desconhecido. Falando com o bicho, há que se imaginar que o roceiro malucou de vez. A senhorinha falando com a planta, logo se diz que está abilolada, ruim da cabeça. E o que dizer quando o menino vai logo cedinho despejar leite do peito da vaca no seu pratinho de estanho com farinha seca?
A paisagem da roça sempre traduz o clima da região. Às vezes, tudo é avistado vicejando, verdejante, numa moldura que tanta alegria causa aos olhos e ao coração. Noutras vezes, apenas a terra esturricada, as plantas entristecidas, os bichos magros gemendo suas fomes e sedes.
Mas não há como desejar que tudo de repente se transforme. O sertão é assim mesmo. Algum tempo de chuva e até muitos anos sem cair sequer um pingo d’água. E tudo isso fica bem demonstrado na feição de cada roça e até de seu humilde e singelo habitante. A feição sertaneja vai se modificando segundo o tempo lá fora e mais adiante.
Ora, o homem da roça, ainda que viva num mundo que tanta ama, vive entremeado de alegrias e sofrimentos. Entristece demais quando a seca aperta e sequer sabe o que fazer para dar água e alimentar seu rebanho. Mas também um sorridente e cheio de contentamento se a invernada foi boa e o seu mundo retomou o verdor molhado.
De qualquer modo, relembrar a roça é trazer à memória o cesto de palma, a porteira rangendo do curral, os estrumes tomando os solados, os berros e os mugidos, o voo dos passarinhos ao entardecer. Recordar a roça é rebuscar o sabor do leite quente tirado do peito da vaca naquele momento e derramado em prato de estanho já com tiquinho de farinha.
Recordar a roça é ter na memória o mandacaru, o xiquexique, a palma, a jurubeba. É relembrar as veredas espinhentas, as estradas empoeiradas, os caminhos que vão se encurvando e se espalhando. É em pensamento avistar a tem-tem guardiã, a galinha ciscando pelo quintal, o cachorro correndo por dentro dos tufos de mato.
Recordar a roça é sentir o cheiro do cuscuz ralado ainda no escurecido alvorecer. É se envolver pelo aroma do café torrado e peneirado em quintal, então fumegando por cima do fogão de lenha. É ouvir o chiado da banha de porco na frigideira e o cheiro forte da tripa de porco, do toucinho, do bucho, do pedaço de carne de sol.
Recordar a roça é mesmo na distância ouvir o vaqueiro cuidando de seu rebanho, vaqueirando seu bicho de pasto e curral, ecoando seus aboios e toadas para alegria das vastidões. É avistar o suor da luta, o cansaço do animal, a roupa vaqueira sendo pendurada pelos cantos da casa. O gibão, a perneira, a sela, o estribo, tudo.
Contudo, verdadeiramente recordar o sertão é jamais desapartar de seus clarões do dia ou da noite. Ter a lua grande, bonita, imensa, de dourado brilhoso, espalhando seus fulgores e canções pelas noites tão singelas e cativantes. Mas também o sol raivoso, voraz, cheio de queimor e abrasamento. E entre as duas luzes, a brandura do amanhecer e do entardecer. Em momentos assim, as roças e os sertões se transformam totalmente. Tornam-se apenas poesias.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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