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sábado, 15 de abril de 2017

QUEREMUNDO VIRANDO BICHO


*Rangel Alves da Costa


Se as histórias se confirmaram, nesta Semana Santa Queremundo novamente surgiu para assustar o sertão inteiro. Já reina medonhamente desde o início da quaresma, quando sua transformação em lobisomem deixa meio mundo em polvorosa, desde os iluminados das ruas aos escondidos dos quintais e afastados de plena escuridão. E já desde mais de vinte anos que essa história passa de boca em boca, com gente jurando pela mãe e pelo pai que é verdade, que até já o avistou no breu debaixo de pouca lua.
Quem coisa mais estranha e esquisita é essa história de Queremundo, o que vira bicho, o que vira lobisomem, o que é avistado como um ser transfigurado em fera. Tanta coisa num só por que a cada relato surge uma aparição diferente, sendo a de lobisomem a mais constante e afamada. Mas há gente dizendo que do seu vulto outra coisa não se avista senão um cachorro grande, peludo demais, de cabeça disforme, olhos afogueados e dentes descomunais. Há também quem afirme ser metade homem e metade bicho, sendo da cintura pra cima a coisa mais feia do mundo, com olhos em chamas, orelhas pontudas, dentes apunhalados e cabelos desgrenhados por todo lugar.
Seja de que jeito for, a verdade é que a história de Queremundo virando bicho se alastra desde muito. O homem é estranho mesmo, de poucas palavras, um tanto carrancudo, gostando de viver afastado de todo mundo. E quando o período quaresmal se aproxima então, pois chega a sumir por dias. E tal fato logo chama a atenção dos conversadores debaixo dos pés de pau, afirmando sempre que o cabra se esconde assim porque passa o dia dormindo para a transformação da meia-noite em diante. E também porque não quer mostrar as marcas pelo corpo deixadas pelos tocos e gravetos quando rola pelo chão quando em bicho vai se transmudando e pelos arames que lanham o corpo do bicho em fuga.
Tudo isso, contudo, sem ninguém ter certeza. O próprio Queremundo é capaz de desandar bofetão em qualquer um que lhe chegue com a mínima insinuação. Só não diz nada - e até fica todo manso e desconfiado - na presença da Velha Totonha. Somente ela sabe o seu segredo, somente ela conhece o começo e fim dessa história de virar bicho da quaresma em diante. Contudo, não revela nada a ninguém. O que seus olhos viram e seus ouvidos ouviram, jurou jamais repassar a ninguém. Somente ela sabe o que fez com que Queremundo passasse a ter essa sina triste na vida. Também ela, na sua sabedoria da idade, tinha certeza da veracidade daquelas histórias sempre repetidas de bichos esquisitos surgidos naquele período santo. E Queremundo não era o primeiro não, pois muitos e muitos já se transformaram em monstros em meios às escuridões, e mais comumente em lobisomens.
Lobisomem é um bicho homem, já se espalhava essa história desde os tempos de antanho. Mas homem amaldiçoado, pecador por demais nas andanças terrenas, trazendo no destino a sina dos uivos e arremedos nas noites feias e escuras. Já outros, coitados, padecentes por aquilo que não deu motivo, pois homens-bichos pelos mistérios familiares e das crenças que acabam desfavorecendo a vida. Entonce, a pessoa se torna lobisomem, em triste rito de transformação na noite de lua cheia no período quaresmal, ou já nasce predestinado à horrenda sina da monstruosa transformação.
O primeiro, por ser gente ruim da peste, um “fi do cabrunco” que bate na mãe e dá rasteira em aleijado, rouba esmola de igreja ou age com desfaçatez ante a fé de um povo. O segundo, porque nascido em família de sete filhos e não é batizado pelo do meio. Ou seu irmão ou irmã se torna seu padrinho ou madrinha ou não terá jeito mesmo, pois em bicho haverá de se tornar nas noites negras e aterradoras. De qualquer modo, quando chega o tempo da semana santa os bichos aparecem depois que o negrume se fecha e mais medonhos se tornam perto da meia-noite e daí em diante. Quando a lua se esconde, o predestinado corre em busca de cama de capim e ali rola, se atormenta todo, até o bicho aparecer em seu corpo. Quando levanta e começa a correr em direção às estradas, curvas de caminhos e aos quintais, já será apenas o lobisomem.
E o coitado do Queremundo com a triste sina de virar bicho. Mas por quê? Somente a Velha Totonha sabe dizer. Mas não diz. Coisas do sertão e seus mistérios. Além de ser o que é, assim um mundo de seca e de sofrimento, o sertão também é uma terra de mistérios, assombrações e encantamentos, principalmente nas noites negras, nos negrumes mais escurecidos, nos breus ausentes de lua. Ou de luas de fogo nos olhos dos lobisomens.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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