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domingo, 28 de novembro de 2010

O PROCESSO SOBRE A HERANÇA DAS TERRAS DE POÇO REDONDO E CANINDÉ DO SÃO FRANCISCO (2ª Parte)

O PROCESSO SOBRE A HERANÇA DAS TERRAS DE POÇO REDONDO E CANINDÉ DO SÃO FRANCISCO (2ª Parte)

Rangel Alves da Costa*



Ouvido, o Ministério Público Federal opinou pela improcedência do pedido de presumíveis herdeiras Adélia Ferreira Marinho e Luzia Ferreira Marinho, nos seguintes termos de mérito:
"As demandantes dizem-se proprietárias, por herança, de parte das terras então integrantes do "Morgado de Porto da Folha", terras essas que constituiriam um imóvel individualizado cuja área seria de impressionantes cento e noventa e três mil e quinhentos hectares.
Ainda nas palavras das demandantes, suas terras foram alvo de apossamento pelo INCRA, que teria promovido diversas ações de desapropriação que contemplaram terceiros - em lugar das demandantes - com a correspondente compensação pecuniária.
Pois bem. As requerentes discorreram com habilidade ao tratar do perfil jurídico da desapropriação indireta. Conceituaram-na como esbulho forcejado pelo poder público; um ato ilegítimo que enseja indenização por não ser possível recuperar imóvel que, além de incorporado ao patrimônio, foi afetado a uma finalidade estatal.
Perfeita exposição. Todavia, a despeito da destreza ao expor o fundamento jurídico da pretensão, carecem as autoras de respaldo probatório.
Deveras. Por ordem lógica, o primeiro item a ser provado em uma demanda centrada em desapropriação indireta consiste na propriedade do imóvel supostamente tomado pelo poder público. A premissa é simples: só pode ser indenizado algo que efetivamente figurava no patrimônio do pretendente à reparação.
Quando falamos em comprovar a existência de propriedade, notadamente de uma área rural, falamos em estabelecer com precisão sua área, estremar suas confrontações e definir, de forma segura, a sua localização. Estamos falando, pois, em se documentar a realidade de algo que existe em certa medida de espaço e que se distingue dos congêneres justamente por seus limites.
Conquanto intuitivo, não é ocioso realçar que a exigência de se identificar pormenorizadamente o bem não se funda apenas no propósito de individualizá-lo. Comparece, sobretudo, a necessidade de se elucidar se sua área foi submetida ou não ao apossamento administrativo.
O registro imobiliário ancorado aos autos, no entanto, é completamente inservível no que atina à identificação do imóvel que pertenceria às autoras, pois não faz nenhuma referência à sua localização.
Transcrevo o teor relevante do citado documento (certidão de fl. 21):

"CARACTERISTICOS E CONFRONTAÇÕES: uma parte em comum dos terrenos do extinto MORGADO DE PORTO DA FOLHA, situado no Termo de Porto da Folha, desta Comarca."

Impossível aferir, destarte, a real localização física do imóvel. Qual a sua área? Quais as confrontações? Em que lugar se situa? Sem essas respostas imprescindíveis, não se pode determinar se o INCRA, por meio de ações indevidas em face de terceiros, deu causa à desapropriação indireta; não se sabe se as terras alegadamente pertencentes às autoras foram alcançadas ou não por tais demandas.
O croqui de fl. 29, desnecessário insistir, nenhuma força probante apresenta. A partir de quais bases foi elaborado, se o título de propriedade não indica qualquer marco limítrofe das terras?
Tocava às acionantes, irretorquivelmente, esclarecer a contento essa verdadeira questão prejudicial, consoante dispõe o art. 333, I, do CPC. Deveriam, em tempo e sede adequados, ter buscado a demarcação das terras e/ou a retificação/suprimento do registro imobiliário. Entretanto, mesmo na corrente lide, em momento manifestaram interesse em dirimir, por meio de prova compatível, esse quadrante nuclear de sua pretensão (fl. 112 e 118/119).
A bem da verdade, sequer a continuidade da posse, como bem salientou o Ministério Público Federal, mereceu a atenção das demandantes. Nada há nos autos que permita inferir o exercício dessa prerrogativa, deixando-se em aberto a concreta possibilidade da perda do bem por força de usucapião.
Mas não é só. O demandado fez chegar ao feito documentos pertinentes às ações de desapropriação intentadas a respeito de imóveis supostamente situados na área que pertenceria às demandantes. Ao correr dos olhos (fl. 151/251), não se percebe nenhuma irregularidade capaz de macular os procedimentos implementados pela autarquia, valendo frisar que, em todos os casos, foi realizado prévio levantamento da cadeia dominial das terras que foram objeto dos referidos litígios.
Não bastasse ser ônus processual das requerentes a comprovação de eventuais vícios que inquinassem os atos praticados pelo INCRA, é de se recordar que os mesmos são revestidos - como todos os atos administrativos - de presunção de veracidade (quanto ao substrato fático) e de legalidade (quanto ao seu ajustamento ao ordenamento jurídico). Por isso, são necessariamente presumidos válidos e regulares até comprovação segura em contrário.
Nesses termos, por mais credibilidade que se queira emprestar, o depoimento pessoal da parte autora por si só não basta para demonstrar a existência de fraudes - ou qualquer defeito - em detrimento dos registros públicos utilizados como supedâneo das mencionadas ações de desapropriação.
Tais registros, além de incorporados a processos administrativos, por si só gozam de fé pública e apenas pelo instrumento processual cabível poderiam ser desconstituídos. A hipótese de fraude, a propósito, resvala para um extremo tal que só poderia ser acolhida diante de provas irrefutáveis.
Explico. Quando o Estado promove uma ação de desapropriação, mesmo para fins de reforma agrária, a presença ou não do real titular do domínio no pólo passivo não condiciona o andamento da lide. Esta prossegue; é julgada; o imóvel é incorporado no patrimônio público. Entrementes, enquanto não solucionada a questão do domínio nas instâncias ordinárias, a indenização devida permanece retida, assegurando-se o seu recebimento pelo legítimo proprietário (vide art. 6º, §1º, da LC nº 76/93).
Ora - e esse é o ponto a que tencionávamos chegar-, a tese das autoras implicaria admitir que o Poder Judiciário Federal e o Ministério Público teriam sido ludibriados nas quase quarenta ações de desapropriação para fins de reforma agrária ajuizadas em torno das terras localizadas na suposta área rural pertencente às autoras. Ou seja, seguindo o raciocínio das postulantes, o Judiciário, com a anuência e resignação do Parquet, haveria autorizado, em afronta à norma expressa de Lei, o levantamento de indenizações por pessoas que não demonstraram a condição incontroversa de titulares do domínio dos imóveis colhidos pelo programa de reforma agrária.
Enquanto instituições, Poder Judiciário e Ministério Público são constituídos de pessoas e, portanto, são falíveis. Não se insinua, portanto, a impossibilidade de que erros tão graves e tão repetitivos possam ocorrer ao longo de vinte anos. São, em tese, possíveis, mas - diante da realidade - improváveis. Por conseguinte, a par da completa ausência de elementos de convicção nesse sentido, tal hipótese, no mínimo, soa inverossímil.
Tão inverossímil quanto o comportamento das autoras: embora sabendo das desapropriações diretas (supostas causadoras da aventada desapropriação indireta) promovidas pelo INCRA desde a década de 80, somente em 2004, restando dois anos para a consumação do lapso prescricional, resolveram promover esta demanda indenizatória. Alguém que realmente estivesse sendo esbulhado de forma tão notória em sua propriedade, dotado de um mínimo de bom senso e diligência, certamente não teria um comportamento tão leniente".
Ante as pretensões autorais, as provas juntadas e os depoimentos colhidos, acolhendo a tese do MPF, o Juiz Federal Substituto, Fernando Escrivani Stefaniu, julgou improcedentes os pedidos em 27 de novembro de 2006.
A sentença observada acima diz respeito à ação judicial promovida pela herdeira contra o Incra, postulando receber indenização pelas desapropriações irregulares que alegou terem sido feitas pelo órgão federal. Contudo, os pedido formulados foram julgados improcedentes. A competência para julgamento de tal ação foi, portanto, da Justiça Federal.
No dia 16 de fevereiro de 2007, os autos foram encaminhados, em grau de recurso, para o Tribunal Regional Federal da 5ª Região – TRF-5. Autuado em 13/03/2007, o Recurso de Apelação Cível foi tombado sob o nº 409688-SE, sob a responsabilidade da Primeira Turma julgadora, com a relatoria do Desembargador Federal Rogério Fialho Moreira. Atualmente, em novembro de 2010, está concluso ao Relator, quer dizer, aguardando alguma decisão ou despacho por parte deste.
No mesmo Tribunal Regional, na Primeira Turma e com a relatoria do Desembargador Federal José Maria de Oliveira Lucena, consta um Recurso de Apelação Cível de nº 442496-SE, autuado em 17/04/2008, onde as herdeiras, na condição de apelantes, litigam contra a Companhia Hidrelétrica do São Francisco – CHESF. Atualmente o recurso está concluso ao relator.
Há que se observar, neste ponto, que a justiça federal não vem dando provimento aos pleitos das herdeiras. Na justiça estadual conseguiram ver reconhecido um pedido indenizatório a título de danos morais, pleiteados contra o Estado de Sergipe.
As herdeiras, antes mesmo de entrar com a ação contra o Incra, já haviam ajuizado demanda indenizatória por dano moral e material contra o Estado de Sergipe. Com efeito, através do processo nº 199911903148, julgado pela 19ª Vara Cível em 09/02/2004, as requerentes atribuíram "responsabilidade ao Estado por omissão na prestação jurisdicional que teria levado à perda da propriedade, objeto de herança paterna, denominada "Morgado de Porto da Folha" (área equivalente a 193.500 hectares)".
Segundo os termos da Sentença, a justiça reconhece, em parte, o pleito indenizatorio: "(..) entendo, pois de bom tamanho, portanto, dentro do principio da razoabilidade e da proporcionalidade, que o requerido pague a cada autora, à título de indenização pelos danos morais como compensação aos danos sofridos a quantia de duzentos mil reais (R$200.000,00)".
Como eram duas as autoras, Adélia Ferreira Marinho e Luzia Ferreira Marinho, o Estado de Sergipe foi condenado a pagar indenização por danos morais no valor de R$ 400.000,00. O Estado recorreu através de Ação Rescisória (Processo nº 2007601095), porém teve o seu pleito negado. Não há mais possibilidade de recurso. O débito existe, mas o pagamento é outro problema a ser solucionado, pois o valor foi convertido em precatório: um título do Estado reconhecendo a dívida, que pode levar anos para ser paga.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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