*Rangel Alves da Costa
Era alvorecer do dia 14 de junho de 2018, e foi neste dia e nesta aurora sertaneja que Lampião fazia a segunda visita ao templo maior do catolicismo poço-redondense. A primeira, como se sabe pelos anais da história, ocorreu nos idos de 1929, mais precisamente no dia 19 de abril, quando o cangaceiro-rei assistiu missa, juntamente com a cangaceirama que lhe fazia companhia, no interior dessa mesma igreja, logicamente bem antes de todas as reformas havidas.
Essa história hoje é tida como célebre e até denominada por uns “O encontro entre a cruz e a espada” e por outros como “A cruz e o mosquetão se encontrando no sertão”. Num cordel caberia um pomposo título: “Quando uma buchada selou a amizade entre o sacerdote e o cangaceiro”. De qualquer modo, a verdade é que o fato até hoje é tido como um dos mais pitorescos da história cangaceira, e tudo acontecido naquele Poço Redondo de antigamente.
Na ocasião, a 19 de abril, ao repentinamente surgir no pequeno arruado de Poço Redondo e logo procurar a residência de China do Poço e Dona Marieta (meus avôs maternos), Lampião não esperava encontrar o vigário da paróquia naquela mesma moradia. Mas Padre Artur Passos estava lá, e repousando num dos quartos para a celebração de missa mais tarde. Era costumeiro que o vigário buscasse estadia na casa de China e Marieta, mas não era costumeiro que a cangaceirama aparecesse na povoação e logo num dia de missa. Aliás, foi a primeira vez que o grupo de Lampião bateu às portas da pequena povoação.
Já tendo tomado informações sobre a importância de China na região, então Lampião foi diretamente à porta. E que desespero danado para os donos da casa. Espanto pela repentina chegada do cangaceiro maior e medo do que poderia acontecer se o padre de repente saísse do quarto e desse de frente com a ferocidade em pessoa. Valha-me Deus, e agora! Atormentou-se Dona Marieta. Vixe Maria! Silenciosamente dizia o desassossegado China. Vai num vai, acabou que o dono da casa encontrou coragem para dizer ao Capitão quem estava trancado e dormindo num daqueles quartos.
Lampião só faltou gargalhar na hora, mas manteve o comedimento que o ilustre vigário merecia. Respeito e acatamento às coisas da igreja, pois Virgulino era devotado e religioso em profusão. Contudo, o mundo quase acaba para China e Marieta quando o cangaceiro disse que ia até o quarto para falar com o padre. A dona da casa, numa aflição de causar dó, correu pra garapa forte e depois se ajoelhou em orações. Implorou por todos os santos. China, sempre procurando manter a calma para não tremelicar diante do Capitão, tinha o rosto esbranquiçado e então avermelhou de vez dos pés à cabeça.
“O que foi Seu China, tá nervoso?”. Perguntou o cangaceiro. “É o calor Capitão, é o calor que tá grande demais, só isso!”. Foi o que conseguiu responder enquanto apontava qual era a porta do quarto onde o padre estava. “Toc, toc, toc...”. Lampião repetiu as batidas, porém sem nada falar. Mais uns toques e ouviu-se lá de dentro, em tom raivoso: “Mas quem será esse que se atreve a cortar o sono do vigário?”. “Sou eu padre, sou eu. Eu mesmo em carne e osso: Virgulino Ferreira da Silva, conhecido por Lampião”. Foi a resposta de pronto. E novamente o padre, já virado na gota de raiva: “Não é só pecado, mas merece ser excomungado quem diz uma mentira dessas. Mas eu queria mesmo encontrar Lampião. Só assim ele ia ver o que uma batina é capaz de fazer!”.
E foi abrindo a porta enquanto falava, e num instante não acreditou no que via. Diante dele, frente a frente, olho no olho, o rei cangaceiro, o temido e terrível Lampião. E quase dá um chilique quando o cangaceiro lhe estendeu a mão pedindo a benção. “Isso é um sacrilégio, isso é um sacrilégio!”. Ia negar a benção, mas achou mais conveniente abençoar depois que avistou o armamento despejado por cima do cangaceiro. Daí em diante, a esperteza de Lampião passou a comandar as ações. Não demorou muito e os dois já estavam em regabofe como dois velhos amigos. E mais: com a permissão de que Lampião e seu bando fossem assistir missa.
E assim, naquele dia 19 de abril, a cangaceirama se ajoelhou perante o rústico altar e orou pedindo proteção contra as temeranças da estrada. E depois todos tomaram caminho pelos carrascais sertanejos. E oitenta e nove anos após, no dia 14 de junho de 2018, Lampião faria a segunda visita ao templo maior do catolicismo poço-redondense. E ali chegou em madeira de lei, pelas mãos do artesão Mestre Tonho, e para os festejos de abertura do Cariri Cangaço Poço Redondo.
Só que dessa vez encontrou a igreja de portas fechadas. Padre Mário havia se atrasado para receber o famoso cangaceiro. Por ali mesmo Lampião ficou, perguntou pelo compadre Manoel Severo e pela sua madrinha Lili, para depois sair de fininho e se meter dentro dos livros de história.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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