*Rangel Alves da Costa
A vida é cheia de encantamentos, de
tristezas, de alegrias. Na infância um viver de desandar e revirar, de se
esconder e não querer ser achado. Para depois ter de acertar o passo na vida e
aprender a caminhar na estrada.
Depois disso, depois que a juventude vai
despertando o ser com outro pensamento e ideias, os caminhos passam a ser
escolhidos com mais vagar e os passos dados sem muita pressa de chagar.
Compreende-se a vida como um estranho livro.
Quando a idade avança, e vai avançando cada
vez mais, aqueles caminhos passados, aqueles passos dados, tudo é retomado pelo
pensamento, pela memória, pela nostalgia. E sabe que daí em diante pouco irá
caminhar, e sequer em busca de sonhos tão desejados e jamais alcançados.
Tudo se torna difícil demais. As estradas são
apenas os passos, as realizações são aquelas rotineiras e de pouco fazer. Olhar
que se lança saudoso aos horizontes, coração que ainda sente pulsar desejos
antigos. Mas tudo apenas alento para afastar as angústias da solidão.
Solidão que chega como companhia inafastável.
Na velhice há uma solidão que, mesmo não estando sozinha, a pessoas se sente
como distanciada de tudo, como se não puder mais ter ao lado as coisas tão
cativantes.
E depois vem a soleira da porta como
horizonte de vida. Foi assim que aconteceu com um conhecido e acontece com
muita gente.
Na soleira da porta, ele via tudo passando.
Os ódios, os rancores, as falsidades. Tudo passava e ele continuava feliz...
Na soleira da porta, bem em cima do batente e
ladeando a portada, ele via as folhas secas esvoaçando em fúria. Entristecia,
mas pensava na próxima estação e continuava feliz.
Na soleira da parta, logo ao amanhecer, ele
viu o menino do pirulito passar e comprou uma porção só pra lhe causar contentamento.
O menino estava triste, mas o seu novo sorriso também lhe trouxe felicidade.
Mas houve um tempo em que ele ia muito além
da soleira da porta. Cortava estrada, seguia distante, chegava perto do céu no
seu cavalo alazão. Retornava no suor na luta, mas sempre feliz pelo seu ofício.
Dono do mundo. Avô, pai, tudo. Cheio de força
e disposição, não sentia cansaço nem quando o ofício do dia parecia querer
testar suas forças. Vencia espinhos, pontas de pedras, tocos de pau, e sem
jamais perder o encorajamento em busca da felicidade.
Olhos acostumados a avistar o conhecido e o
espantoso. Mãos que se alongavam como se quisesse alcançar o sol e a lua. Uma
sabedoria de mundo, tudo aprendido no livro da luta, que nenhum mestre de
academia jamais saberia igual.
E hoje, ou já desde algum tempo, apenas ali
na soleira da porta. E da soleira da porta avistando o mundo que era seu e que
não é mais. Não entristece, não lacrimeja, não se atormenta por dentro. Tudo
conseguiu, e por isso é feliz.
Tudo conseguiu, mas o que conseguiu?
Sobreviver em meio a tanta dificuldade, ter o pão de cada dia em meio a tanta
panela vazia e prato sem pão, ter a honradez de olhar para o passado e dizer
que foi honesto em cada passo que deu.
Mas hoje está na soleira da porta. Noutros
idos, costumava sentar num tamborete pela calçada ou mais adiante na malhada,
em cima de um tronco de pau deitado. Conversava com os bichos, com o
passarinho, com a pedra grande, com o vento açoitando.
Não reclamava de não poder cortar estrada e
tomar poeira no meio do mundo. Não entristecia poder não poder mais se achar o
dono do mato, das catingueiras floridas e das pedras molhadas do riachinho.
Tudo tem seu tempo, dizia.
Contentava-se com o seu mundo na soleira da
porta. Até podia andejar pelos arredores, colocar cadeira debaixo do sombreado
da jaqueira, conversar lá fora com o calango e passarinho.
Era ali que gostava de ficar matutando as
coisas da vida. De vez em quando conversando sozinho (porque achava bom fazer
assim), sentenciava: Pensando bem... A gente vale tão pouco aos outros, que num
instante a gente não vale mais nada!
Pensando bem... A idade da gente devia ser
repartida. Quem não soubesse viver a fatia dada, mais adiante essa fatia seria
perdida até retornar ao tempo perdido, com a obrigação de aprender a viver.
Contudo, um mistério há nessa história toda.
Ele sempre está ali na soleira da porta, entre o vão de fora e o vão de dentro,
por um motivo angustiante e pesaroso demais. Dali daquele local deu adeus à
velha companheira quando ela partiu para a eternidade.
E depois disso, feito menino teimoso, ali,
ali na soleira da porta, fica a esperar que um dia ela volte. E crê que a morte
é ressuscitada em nome do amor. E acredita que quando o amor é profundo demais
nenhum adeus será de última despedida.
Assim, na soleira da porta também está o
amor.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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