*Rangel Alves da Costa
Difícil de imaginar um pássaro levando no
bico um punhal, um mosquetão, uma faca afiada, um rifle, uma cartucheira
repleta de balas cuspideiras de fogo. Realmente difícil imaginar a ave
escondida entre as folhagens e ramarias e num instante fazer espanar adiante o
grito, a dor e o sangue. Qual passarinho seria capaz de fazer assim, tão
humanamente agindo e mais parecendo um bombardeiro em meios às catingueiras e
carrascais?
Mas assim acontecia. Assim acontecia nos
tempos do cangaço, onde cada integrante do bando passava a ostentar um nome de
guerra, alcunha ou apelido. Quem era Timóteo, por exemplo, na vida cangaceira
passava a ser Perfumado, Cabriola ou Estrangeiro, dentre muitos outros nomes.
Denominações até poéticas, exóticas, inocentes, cordiais, mas apenas para
ocultar a verdadeira feição destemida, a voracidade em pessoa, o barbarismo em
forma de gente. Ao invés de Besta-Fera, escolhia-se Querubim. Mas nada de anjo.
Apenas a fera de sangue no olho e ferro nos dentes.
Por escolha do próprio Virgulino Ferreira da
Silva, o Capitão Lampião, vez que este - em sua maestria de estrategista até
repetia velhos apelidos em novos cangaceiros, de modo que as baixas fossem
menos percebidas e a sensação de unidade de grupo tivesse continuidade -,
procurava amenizar as durezas da vida cangaceira a partir de apelidos singelos
e até contrastantes com a realidade. E assim foram surgindo as alcunhas, e hoje
mais famosas que os próprios nomes.
A povoação sergipana e sertaneja de Poço
Redondo teve nada menos que 34 filhos seguindo as veredas de Lampião. Foi
igualmente fecunda tanto no fornecimento de rapazes e mocinhas ao bando como em
apelidos sublimes demais para o destino escolhido. Numa ligeira observação, os
filhos cangaceiros de Poço Redondo formaram fauna, flora, higienização e muito
mais. De Sabiá a Cajarana, de Cravo Roxo a Sabonete, tudo é de Poço Redondo.
Mas por que Delicado ser nome de um feroz cangaceiro? Cabia delicadeza no
cangaço? Supõe-se que Zumbi não era dos mais simpáticos.
Fora os nomes de pássaros que logo adiante
citarei, vejam que salada de apelidos que adornaram aqueles filhos de Poço
Redondo: Delicado (João Mulatinho, irmão da cangaceira Adília) Demudado (Zé
Neco), Coidado (Augusto), Cajazeira (José Francisco do Nascimento, o Zé de
Julião), Novo Tempo (Du, irmão de Sila), Marinheiro (Antônio, também irmão de
Sila), Elétrico, Penedinho (Teodomiro), Bom de Vera (Luís Caibreiro), Moeda (João Rosa), Alecrim (Zé Rosa),
Moeda (João da Guia), Sabonete (Manoel Rosa), Borboleta (João Rosa), Quina-Quina
(Jonas da Guia), Ponto Fino (José da Guia), Zumbi (Angelino), Cravo Roxo
(Serapião), Cajarana (Francisco Inácio), e Santa Cruz. E ainda outros.
Mais de perto, interessei-me pelos nomes de
passarinhos dados àqueles jovens sertanejos. Sabiá (João Preto), filho de Zé
Bié e Dona Antônia; Canário (Bernardino Rocha), filho de Dona Virgem e Cante; Zabelê
(Manoel Marques da Silva), filho de Antônio Marques da Silva e Maria Madalena
de Santana; Mergulhão (Gumercindo, filho de Paulo Braz São Mateus e irmão de
Sila); Lavandeira (filho de Virgem de Pemba); Beija Flor (Alfredo Quirino),
filho de Quirino da Lagoa do Boi; e Azulão (Luís Maurício da Silva). E ainda
houve um Borboleta (João Rosa). Borboleta, um lindo e multicolorido inseto,
dando nome a uma fúria humana.
Como visto, um bando, uma revoada de
passarinhos, uma ninhada de voejantes cortando os céus catingueiros e
nordestinos. Vai um Sabiá, vai um Canário. Segue um Zabelê e logo ao lado um
Mergulhão. Voando vai Lavandeira e bem à frente o Beija Flor. E também o
Azulão. Tudo pássaro, tudo passarinho. Uma lindeza de avoantes, a mais linda
das revoadas. Assim seria se em cada pássaro não estivesse um homem aprisionado
em seu destino de luta, de guerra e de sangue. Maldosos e perversos sim, mas
também pelo instinto de sobrevivência. Muito mais a luta pela sobrevivência do
que a esperanças de dignas conquistas.
Canário, por exemplo, é passarinho bonito, de
penas amareladas, de canto belo e voo plangente. Simboliza o ouro, a vitória, a
conquista. Já o outro Canário, o cangaceiro, era tido como carrancudo e um dos
mais feios do bando de Lampião. Ao invés da suavidade e singeleza do pássaro,
este possuía ilimitada ferocidade e transformava suas poucas palavras em
atitudes brutais. O Canário cangaceiro foi derrubado de seu voo na mata em
1938. Seu algoz, o também cangaceiro Penedinho, não usou badoque ou peteca
baleadeira. Ao invés disso, lançou mão de arma de fogo e, atirando pelas
costas, fez espanar sem pena as penas passarinheiras.
Já Zabelê, meu tio-avô Manoel Marques da
Silva, possuiu história e destino muito parecido com o do pássaro de igual
nome. O passarinho Zabelê, como se sabe, é ave de terno canto, um tanto
recluso, tido até como poeta das aves. Bem assim o Zabelê cangaceiro, pois tido
como versejador, romântico e reservado. Estava na Gruta do Angico em 1938
quando ocorreu a chacina. Salvou-se, contudo. E salvou-se, talvez em voo
passarinheiro e para local tão distante que nunca mais apareceu em Poço
Redondo, seu berço familiar.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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