*Rangel Alves da Costa
Somente conversando, indo atrás dos fatos,
catando informações, é que a gente fica sabendo das coisas. E cada coisa de não
querer acreditar, principalmente quando envolve uma situação que, ante o
progresso e a estreiteza do mundo, sequer imaginaria que pudesse ter ocorrido
em tempos tão recentes. A história da mulher do mato é, assim, um acontecido
nas terras sergipanas e sertanejas de Poço Redondo, que mais parece ficcional,
ou extraída da imaginação popular, do que mesmo realidade. Mas aconteceu.
Seu nome era Maria de Lurdes, ao menos assim
ela dizia se chamar, mas talvez fosse mais coerente com sua história e
realidade que sua denominação passe a ser “a mulher do mato”. Mulher do mato
sim, das caatingas, dos escondidos da mataria, por detrás das ramagens e dos
tufos lancinantes e espinhentos desses sertões matutos. Mas agora surge o mote
maior: Por que uma mulher, de passado desconhecido, acaba escolhendo o mato
como sua moradia?
Ora, há de se dizer que muita mulher mora no
mato, que vive em meio às brenhas sertanejas na normalidade da vida. Mas há uma
grande diferença entre esta moradora dos escondidos sertanejos e Maria de
Lurdes. Aquela mulher mora em casa, possui família, tem endereço, familiares
por perto, pode ser encontrada a qualquer instante. Com Maria de Lurdes, a
mulher do mato, era muito diferente, eis que sem lar, sem nenhum familiar por
perto, sem nada na vida que dissesse viver na normalidade.
Maria de Lurdes, a mulher do mato, vivia no
meio do mato mesmo. Não possuía um ranchinho de palha ou de taipa, nada. Não
possuía um chão de barro para colocar uma esteira nem uma trempe com pote em
cima. Não possuía sequer um prato ou cuia, não tinha nada. Nem uma pequena junção
de roupas ela tinha. Vivendo no meio do tempo, sua casa era qualquer lugar,
debaixo de umbuzeiro, duma craibeira, ao lado dos xiquexiques e mandacarus. Seu
teto era a lua e sua janela era o sol na face.
Mas o que teria levado esta mulher a viver
assim, a de repente passar a ter essa situação de vida? Segundo relatos, Maria
de Lurdes era uma alagoana que fugiu de sua terra e do convívio familiar após
ter passado por um grande infortúnio na vida. Estuprada, ferida na alma, não
mais suportou viver naquele cenário brutal e estarrecedor. Como opção para
fugir das memórias do sofrimento, com a mente tomada por fantasmas
devastadores, então ela resolveu sair pelo meio do mundo, sem destino, chegando
um dia as terras de Poço Redondo.
Estaria Maria de Lurdes com perfeitas
faculdades mentais? Difícil afirmar, mas certamente que com o juízo afetado e
desarranjado pela violência suportada. A verdade é que a sã consciência
dificilmente permite que uma pessoa deixe um lar para viver pelo mundo como
eterno retirante ou que faça do meio do mato, ao relento e sem qualquer
proteção, sua permanente moradia. E nela ainda era perceptível uma estranha
atitude: temia se aproximar de homem desconhecido. O desconhecido era como se a
representação de um perigo, de um inimigo, de alguém que pudesse violentá-la
novamente.
Assim, o viver nos escondidos do mato foi a
opção de Maria de Lurdes. Apareceu pelos arredores da povoação ribeirinha de
Cajueiro, nas proximidades da casa de Seu Didi, na região de Angico e
ribanceiras do Velho Chico, e neste mundo foi ficando. Os moradores da região,
ante aquela estranha e terrível situação, logo chamaram para si a
responsabilidade de ajudar. Mas Maria nunca aceitou conviver com família alguma.
Aparecia perto do meio-dia e ao entardecer, recebia comida e depois retornava
às entranhas da caatinga. Outras vezes, nem da casa se aproximava. Então seu
alimento era levado e colocado debaixo de um umbuzeiro.
Quando adoeceu certa feita e foi conduzida
por Maria José (de Cajueiro) até a cidade de Poço Redondo, ela nem esperou a
cura hospitalar. Acabou fugindo. Teve que ser trazida ao seu mundo de mato,
bicho e pedra. Nos poucos registros fotográficos que se tem, avista-se uma
mulher magra, de pele escura, de idade avançada, sempre descalça, de cabelos
esbranquiçados. Nem toda roupa doada ela aceitava. Gostava de cores fortes,
vistosas. E quando vestia quase não queria mais tirar do corpo.
Maria de Lurdes, de história tão comovente
quanto encantadora, acabou seus dias de forma angustiante. Um dia, já enfraquecida
pela idade e com pouca visão, eis que acabou errando o caminho na subida de um
morro e se perdeu. Talvez tenha caído na gruta onde foi encontrada já com o
corpo ressequido e morto. Recebeu, contudo, um digno sepultamento. Seu Didi e
outros ribeirinhos fizeram esforço incomum para retirar o corpo do local e
trazê-lo à superfície. Foi enterrada em cemitério, e na cruz talvez coubesse o
seguinte epitáfio: Aqui jaz Maria. Maria do mato, da mata, do céu!
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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