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sábado, 27 de junho de 2020

A HISTÓRIA DE MARIA DE LURDES, A MULHER DO MATO



*Rangel Alves da Costa


Somente conversando, indo atrás dos fatos, catando informações, é que a gente fica sabendo das coisas. E cada coisa de não querer acreditar, principalmente quando envolve uma situação que, ante o progresso e a estreiteza do mundo, sequer imaginaria que pudesse ter ocorrido em tempos tão recentes. A história da mulher do mato é, assim, um acontecido nas terras sergipanas e sertanejas de Poço Redondo, que mais parece ficcional, ou extraída da imaginação popular, do que mesmo realidade. Mas aconteceu.
Seu nome era Maria de Lurdes, ao menos assim ela dizia se chamar, mas talvez fosse mais coerente com sua história e realidade que sua denominação passe a ser “a mulher do mato”. Mulher do mato sim, das caatingas, dos escondidos da mataria, por detrás das ramagens e dos tufos lancinantes e espinhentos desses sertões matutos. Mas agora surge o mote maior: Por que uma mulher, de passado desconhecido, acaba escolhendo o mato como sua moradia?
Ora, há de se dizer que muita mulher mora no mato, que vive em meio às brenhas sertanejas na normalidade da vida. Mas há uma grande diferença entre esta moradora dos escondidos sertanejos e Maria de Lurdes. Aquela mulher mora em casa, possui família, tem endereço, familiares por perto, pode ser encontrada a qualquer instante. Com Maria de Lurdes, a mulher do mato, era muito diferente, eis que sem lar, sem nenhum familiar por perto, sem nada na vida que dissesse viver na normalidade.
Maria de Lurdes, a mulher do mato, vivia no meio do mato mesmo. Não possuía um ranchinho de palha ou de taipa, nada. Não possuía um chão de barro para colocar uma esteira nem uma trempe com pote em cima. Não possuía sequer um prato ou cuia, não tinha nada. Nem uma pequena junção de roupas ela tinha. Vivendo no meio do tempo, sua casa era qualquer lugar, debaixo de umbuzeiro, duma craibeira, ao lado dos xiquexiques e mandacarus. Seu teto era a lua e sua janela era o sol na face.
Mas o que teria levado esta mulher a viver assim, a de repente passar a ter essa situação de vida? Segundo relatos, Maria de Lurdes era uma alagoana que fugiu de sua terra e do convívio familiar após ter passado por um grande infortúnio na vida. Estuprada, ferida na alma, não mais suportou viver naquele cenário brutal e estarrecedor. Como opção para fugir das memórias do sofrimento, com a mente tomada por fantasmas devastadores, então ela resolveu sair pelo meio do mundo, sem destino, chegando um dia as terras de Poço Redondo.
Estaria Maria de Lurdes com perfeitas faculdades mentais? Difícil afirmar, mas certamente que com o juízo afetado e desarranjado pela violência suportada. A verdade é que a sã consciência dificilmente permite que uma pessoa deixe um lar para viver pelo mundo como eterno retirante ou que faça do meio do mato, ao relento e sem qualquer proteção, sua permanente moradia. E nela ainda era perceptível uma estranha atitude: temia se aproximar de homem desconhecido. O desconhecido era como se a representação de um perigo, de um inimigo, de alguém que pudesse violentá-la novamente.
Assim, o viver nos escondidos do mato foi a opção de Maria de Lurdes. Apareceu pelos arredores da povoação ribeirinha de Cajueiro, nas proximidades da casa de Seu Didi, na região de Angico e ribanceiras do Velho Chico, e neste mundo foi ficando. Os moradores da região, ante aquela estranha e terrível situação, logo chamaram para si a responsabilidade de ajudar. Mas Maria nunca aceitou conviver com família alguma. Aparecia perto do meio-dia e ao entardecer, recebia comida e depois retornava às entranhas da caatinga. Outras vezes, nem da casa se aproximava. Então seu alimento era levado e colocado debaixo de um umbuzeiro.
Quando adoeceu certa feita e foi conduzida por Maria José (de Cajueiro) até a cidade de Poço Redondo, ela nem esperou a cura hospitalar. Acabou fugindo. Teve que ser trazida ao seu mundo de mato, bicho e pedra. Nos poucos registros fotográficos que se tem, avista-se uma mulher magra, de pele escura, de idade avançada, sempre descalça, de cabelos esbranquiçados. Nem toda roupa doada ela aceitava. Gostava de cores fortes, vistosas. E quando vestia quase não queria mais tirar do corpo.
Maria de Lurdes, de história tão comovente quanto encantadora, acabou seus dias de forma angustiante. Um dia, já enfraquecida pela idade e com pouca visão, eis que acabou errando o caminho na subida de um morro e se perdeu. Talvez tenha caído na gruta onde foi encontrada já com o corpo ressequido e morto. Recebeu, contudo, um digno sepultamento. Seu Didi e outros ribeirinhos fizeram esforço incomum para retirar o corpo do local e trazê-lo à superfície. Foi enterrada em cemitério, e na cruz talvez coubesse o seguinte epitáfio: Aqui jaz Maria. Maria do mato, da mata, do céu!


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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