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sexta-feira, 19 de setembro de 2014

SESMARIAS, ERÉUS E LATIFÚNDIOS


Rangel Alves da Costa*


Sem poder de profetizar o que mais tarde seria conhecida como questão fundiária, direito de propriedade, posse e desapossamento, reforma agrária e uma série de conceitos que envolvem a terra, mesmo assim alguns sertanejos de priscas eras trouxeram para si o poder da imensidão e do latifúndio sem jamais suar para ter um pedaço de chão. E um destes foi Tertulino Bonome, ainda hoje lembrado pelo seu sugestivo apelido: Terto Tudo Meu.
E os mais velhos diziam que tal apelido surgiu porque o homem chegava na malhada, colocava a mão acima dos olhos para refrear o sol, mirava adiante, nas lonjuras sem fim, e dizia “Tudo meu”. E também porque acaso perguntassem a quem pertenciam aquelas terras beirando o rio ou aquelas outras fronteiriças, ele simplesmente respondia “Tudo meu”. Daí que às escondidas o chamavam também de Terto Tudo Dele. Logicamente que todas as terras da região não pertenciam a ele, mas grande parte sim. A outra parte estava dividida entre poucos.
Mas há um longo percurso a ser conhecido. A maioria das capitanias hereditárias não frutificou, os antigos donatários não existiam mais, as terras se perdiam de vista sem que o governo pudesse dar uma destinação produtiva. Surgiram então as sesmarias, ou propriedades entregues a colonos, cujas cartas registradas nas paróquias garantiam título de propriedade aos trabalhadores. Mas como havia exigência de trabalhar e produzir na terra, poucos conseguiam dar cumprimento e acabavam repassando seus lotes para outras pessoas, que se tornavam como donas, porém sem qualquer título.
Em 1822, o governo resolveu dar uma basta nessa festa de repasse de terras e acabou com as concessões de sesmarias. A partir de então, quem tinha documento paroquial continuava como proprietário, mas quem não comprovasse teria de ficar de mãos abanando. Então começou um problema. O posseiro, mesmo produzindo na antiga terra do sesmeiro, não tinha título que comprovasse sua propriedade. Quer dizer, tinha a posse, mas não o título. Então não tinha nada. E foi quando a política logo cuidou de resolver a situação, mas logicamente em desfavor do pobre trabalhador.
É a partir daí que começa o poderio latifundiarista de Terto Tudo Meu e outros bem-aventurados pelas governanças. Eis que antes de 1822, quando nos bastidores do poder colonial já se falava na proibição da concessão de sesmarias e na garantia da propriedade somente àqueles que já estivessem com o documento paroquial, políticos influentes logo cuidaram de presentear seus amigos. E enviaram missivas dizendo mais ou menos assim: “Vá até a paróquia e registre como de sua propriedade a quantidade de terras que puder delimitar, e mesmo que não conheça os limites exatos. Do resto cuido eu”.
Recado enviado, providência tomada. Também já tendo conhecimento da ordem superior, o responsável pela escrituração não fazia qualquer exigência, bastando que o protegido do político dissesse onde suas terras se estendiam que logo as informações se tornavam legalizadas. E daí surgirem escrituras cujos limites citavam locais que nem mesmo os novos latifundiários sabiam existentes ou com aquelas reais dimensões. E assim que a lei saiu da gaveta estes se tornaram donos de quase todo o sertão, e dentre eles Terto Tudo Meu.
E os posseiros que trabalhavam naquelas terras agora com novos donos? Ora, perderam de vez todo e qualquer direito sobre elas. Tantos e mais tantos foram expulsos, deixando para trás os seus sonhos e levando somente a família e os frangalhos, e tantos outros tiveram de se submeter aos novos proprietários, tornando-se assemelhados a escravos. Mas geralmente preferiam ir tentar a sorte noutro lugar a se submeter aos mandos e desmandos do coronel de patente de barro. E por isso mesmo a imensidão de latifúndios sem nada plantar ou colher, tomados de mataria, sem serventia produtiva alguma, a não ser para o criatório de rebanhos soltos.
Desse modo, as terras do sertão foram divididas entre alguns escolhidos e se formaram os imensos e tantas vezes improdutivos latifúndios. Os antigos posseiros que continuavam achando ter algum direito sobre seus pedaços de chão, logo eram surpreendidos com a ordem de urgente desocupação, pois ali tinha dono. O próprio Terto mandou expulsar mais de vinte famílias de propriedades que nem sabia existentes. Como as escrituras não delimitavam corretamente, então a velha raposa estendia o ardiloso documento diante do pobre e analfabeto e dava um prazo de um dia para pegar a estrada. Ou ali continuar como seu servo.
Os latifúndios eram tão extensos que nem sempre os seus donos se preocupavam em fazer cercamento. Não raro, o latifundiário só sabia onde terminavam suas terras pelo início das terras do outro, ainda assim de forma imprecisa, tantas vezes gerando graves conflitos, verdadeiras batalhas sangrentas. E foi assim também que muitos aumentaram seus domínios. Havia luta pela questão do limite, mas nem sempre o objetivo era a delimitação, mas a tomada da própria terra do outro, e sempre após terríveis confrontos entre os jagunços.
Portanto, os grandes latifúndios sertanejos surgiram das denominadas terras de eréu, ou terras herdadas das forjadas cartas de sesmarias. Imensas propriedades adquiridas do conluio entre o poder e as autoridades paroquiais onde se registravam as terras indivisas, tendo como grandes beneficiários apenas alguns escolhidos. E assim perdurou por muito tempo e ainda há vestígios de existência dessa imensidão de terras em mãos de herdeiros de pessoas como Terto Tudo Meu. Até que os sem-terra invadam tudo.
Mas Terto Tudo Meu se deu mal. E por isso também é lembrado. Lançou o olho gordo em duas tarefas de Miguelim e lá chegou se apresentando como verdadeiro dono, roçando o documento encardido nas fuças do homem. No dia seguinte Miguelim deixou a terra, mas também deixou o dono de tudo debaixo de sete palmos de chão.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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