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segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Um deus qualquer


Rangel Alves da Costa*


Muita gente transforma a percepção de Deus num deus qualquer. Os termos são os mesmos, mas os sentidos não. Quando escrito com letra inicial maiúscula, a referência que se faz é a de Deus criador, do princípio supremo,  do ser onipotente, onisciente e onipresente. É o Deus da cristandade, do catolicismo. Diferentemente ocorre se o termo utilizado se inicia por letra minúscula, então a indicação é de um ser sobrenatural, de uma divindade criada por humanos e por eles adorada.
Na Bíblia há uma clara diferenciação dos termos, como em Timóteo  8, 5-6: "No céu e na terra há alguns que se chamam deuses. Todavia para nós há um só Deus, o Pai.". Também consta do livro sagrado acerca da existência de um único Deus verdadeiro. Por consequência, outros deuses considerados como existentes são tidos como ilegítimos. Deuses espúrios, porém acreditados e seguidos por aqueles cuja crença lhes dá validade e sustentação. São, assim, deuses ocasionais e que supostamente atendem às crenças ou necessidades espirituais de grupos, geralmente invocando-os através de rituais.
Os argumentos gramaticais não são mais importantes que a convenção estabelecida pelo povo. Assim, pouco importa se “deus” com inicial maiúscula ou minúscula se o que se tem em mente é o ser supremo. No mesmo sentido, tanto faz a inicial se o que se deseja representar é uma divindade de culto pagão, uma entidade mitológica, um personagem sobrenatural adorado em culto. Neste aspecto a questão se mostra induvidosa, vez que mesmo os ateus e agnósticos sabem muito bem diferenciar a divindade suprema da religiosidade cristã e as entidades pagãs.
Assim, o Deus do catolicismo é único, de caráter monoteísta, não havendo como imaginar a existência de outros deuses supremos. Mas os deuses, divindades, entidades e figuras endeusadas pelos pagãos são muitos, e tantos quantos forem suas crenças. A mitologia grega é clara neste aspecto, ali o reduto de deuses com diversos matizes e feições e atuando perante os mais diversos aspectos da existência, como na guerra, no amor e na agricultura. As religiões, os cultos e as seitas também elegem os deuses que lhes dão sustentação. Sob a denominação de divindades, se expressam até mesmo em animais ou plantas. Os maias, incas e astecas possuíam centenas de divindades. Bem assim no hinduísmo, nas diversas mitologias e nas religiões politeístas.
Não obstante tais distinções, o que se vem observando dentre muitos é a veneração ao Deus criador dentro da mesma perspectiva que alguns povos têm de seus deuses. Ou seja, não se considera a supremacia de Deus enquanto Ser Supremo de tudo e sobre tudo, mas também como um deus ocasional, surgido ao acaso de uma necessidade ou de uma invocação para resolver um problema específico. Neste aspecto, o Deus do catolicismo vem sendo considerado no mesmo patamar que os deuses pagãos.
Exemplos servirão para demonstrar tal assertiva. Em muitas religiões, cultos e seitas, os deuses são geralmente vistos como protetores de elementos específicos. Há o deus da chuva, o deus da peste, o deus do destino dos homens, o deus da guerra, o deus da paz, enfim, uma divindade para cada situação. E no seio da cristandade observa-se também tal politeísmo na medida em que Deus é cada vez mais invocado não como um todo protetor, mas aquele lembrado apenas quando surge, por exemplo, um problema de saúde, uma instabilidade financeira, uma preocupação familiar, um aspecto afligindo especificamente uma situação de vida.
Assim, a Deus aos poucos vai se imputando a valia de um deus qualquer à medida que a lembrança do seu poder surge apenas em situações pontuais. São as situações de vida, principalmente aquelas onde estão presentes problemas e preocupações, que fazem com que Deus seja lembrado. Como dito, nada muito diferente das seitas politeístas onde se invoca o deus da chuva na época da estiagem, o deus da paz diante da ameaça de guerra, o deus da cura perante um surto de peste. A única diferença é que dentre tais povos cada deus possui uma denominação específica, enquanto o Deus da cristandade é um só.
E o Ser Supremo, parecendo de serventia apenas para determinados instantes da vida, tido como Deus do acaso, acaba transformado num deus qualquer. Assim tornado, sua intercessão é invocada apenas ocasionalmente, não é presença viva e constante no coração e na mente, não é certeza garantidora do guiar-se pelos bons caminhos da vida e força maior norteando as boas ações humanas. E surge apenas quando um fato inesperado que não possa ser suportado e resolvido pelo próprio homem exige sua presença como salvação. Aconteceu algo de errado, logo diz “ai meu Deus”; está precisando de alguma coisa urgente e diz “valha-me Senhor”; quer implorar que façam alguma coisa e diz “pelo amor de Deus”; quer se arriscar em alguma empreitada e diz “e que Deus Pai me proteja”.
Nesta perspectiva de aproximação de Deus apenas diante de circunstâncias, a sua presença na vida do ser humano é tão nula quanto a sua própria fé. Tenho a convicção de que aqueles que reverenciam verdadeiramente o seu Deus têm-no como causa maior da vida e da existência, reconhecem a sua presença graciosa em tudo, e por isso mesmo sentem sua essência no espírito a todo instante. E por isso mesmo não precisam estar por aí pronunciando o seu nome em vão perante a conveniência do próprio homem.
É no silêncio do coração que Ele grita e diz ser necessário porque o ser humano, por mais forte que se ache, não passa de um acaso. O homem sim, este é acaso. Deus é permanência e tudo!


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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