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sexta-feira, 20 de março de 2015

ABDIAS, O CABRA DE CONFIANÇA DE ZÉ DE JULIÃO


Rangel Alves da Costa*


Hoje vivo catando cada pedacinho de fato para ter uma história. Como os principais personagens da saga sertaneja já não vivem mais, eis que tenho de me contentar em ouvi dizer, em perguntar a um e outro, remendando situações para costurar possibilidades. Mas não era para ser assim, não diante de muitas situações, pois convivi com as mesmas pessoas que agora surgem como de importância primordial para as minhas pesquisas.
Assim aconteceu com Abdias, vaqueiro maior do sertão de Poço Redondo, meu berço de nascimento, e amigo fiel e cabra de confiança do famoso Zé de Julião. Famoso no próprio contexto histórico, eis que além de ter sido o cangaceiro Cajazeira do bando de Lampião - esposo da também cangaceira Enedina, morta na chacina de Angico - foi também um dos personagens mais marcantes da história política sertaneja, e esta com feição de verdadeira tragédia. Sua saga também serviu de mote distanciado ao filme “Aos ventos que virão”, de Hermano Penna.
Não tive o prazer e a honra de conhecer Zé de Julião, assassinado em 1961, mas conheci e convivi com Abdias durante muito tempo, porém sem saber de sua trajetória ao lado do ex-cangaceiro e político. Sabia apenas de sua história de grande vaqueiro, de destemido homem em cima de cavalo alazão, de sua ligação com a terra e com a vaqueirama. Sem nada conhecer de sua proximidade com Zé de Julião nem do que havia representado no famoso episódio do roubo das urnas, sequer pude lançar qualquer indagação sobre aqueles fatos ainda hoje tão instigantes.
Culpo-me, porém nem tanto assim, pois naqueles tempos ainda não possuía essa sede pela história sertaneja que hoje possuo, ainda não estava atraído pela heroica saga de minha gente matuta. Era apenas um rapazote amigueiro de velhos sertanejos, principalmente daqueles moradores da Rua dos Vaqueiros e arredores, ilustres cidadãos como Chico de Celina, João Paulo, Galego, Neguinho, Humberto, Messias de Zé Vicente, Mané Vítor, Liberato, e tantos outros. E logicamente de Abdias.
Recordo-me bem que nossos encontros certeiros geralmente ocorriam ali mesmo na Rua dos Vaqueiros (ou Rua de Baixo, depois 31 de Avenida Março e agora Avenida Alcino Alves Costa) e principalmente ao pé do balcão ou ao redor do sinuca do Bar Gineta, de propriedade de Né Cirilo, o Pai Né. Toda essa vaqueirama ali se reunia para talagar casca de pau, conversar sobre chuvas e estiagens, colocar em diante os assuntos próprios do sertão. E eu no meio deles, pois sempre gostei de dar atenção aos velhos conterrâneos e aprender nas suas lições matutas.
Morando por ali, bastava chegar ao local e logo avistava Abdias pelas calçadas conversando com companheiros ou já ao pé do balcão pedindo um angico ou umburana. Homem alto, esguio, sempre de chapéu de couro, a humildade em pessoa, amigueiro e bom de proseado. Naquele tempo eu sabia apenas de sua outra fama, ou seja, que era irmão dos ex-cangaceiros Sila, Mergulhão, Novo Tempo e Marinheiro, e também primo dos irmãos ex-cangaceiros Adília e Delicado.
Verdade é que se Abdias não teve o mesmo destino de seus irmãos, preferindo a vida de vaqueiro nas brenhas fechadas e espinhentas de seu sertão, ainda assim teve participação ativa no “bando” do ex-cangaceiro Cajazeira, o Zé de Julião. Era tido por este como o mais experiente de todos, como o mais fiel e destemido, e por isso mesmo foi escalado para tomar frente ao lado dele no famoso episódio do roubo das urnas nas eleições de 1958, a segunda de Poço Redondo.
A eleição de 1958 era a segunda disputada pelo ex-cangaceiro. Na primeira, após enfrentar perseguições políticas pela sua condição de ex-cangaceiro, experimentar contra si a máquina do poder estadual e todos os tipos de reveses, saiu da eleição derrotado por Artur Moreira de Sá. Havia sido empate: 134 a 134, mas Artur acabou vencendo pelo critério da idade. E a segunda eleição seria ainda mais terrível para Zé de Julião.
Dessa vez, além de as perseguições se redobrarem e as arrumações para a vitória do candidato Eliezer Santana serem vergonhosas, os títulos dos eleitores do ex-cangaceiro não foram entregues. Revoltado ao extremo, profundamente indignado com tanta injustiça contra si praticada, e sabendo que já estava derrotado, o candidato da terra resolveu tomar uma atitude extremada, invadir as seções eleitorais e roubar as urnas. E assim fez.
No dia do pleito, mais de cem cavaleiros amigos se juntaram nos arredores e entraram em audacioso tropel pelas ruazinhas da cidade. À frente seguia Zé de Julião e seu fiel escudeiro Abdias. Na primeira seção que encontrou, o ultrajado candidato desceu do cavalo e entrou calmamente no local de votação. Não demonstrou qualquer brutalidade nem arrogância com as pessoas do local. Mas ao olhar de lado e avistar a urna de votação numa cadeira, abrasou o semblante e, num acesso de cólera, puxou-a com violência. O passo seguinte foi arremessá-la pela janela. E do outro lado estava Abdias para recebê-la.
Em seguida Zé de Julião montou no cavalo e o tropel seguiu em disparada para fazer a catação em outros locais. E essa história continua com cenas realmente cinematográficas, mas absolutamente verdadeiras naqueles idos sertanejos. E exatamente sobre outros fatos dentro desses acontecimentos que eu perdi a oportunidade de conversar com Abdias. Eu perto dele, junto de personagem tão importante na epopeia sertaneja, brindando o sertão com casca de pau, sem jamais ter feito uma pergunta sequer acerca de seu grande amigo Zé de Julião. Que pena!


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com  

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