SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 6 de março de 2015

Sentenças ao molho pardo


Rangel Alves da Costa*


Gosto de encontrar o velho amigo Cardosinho porque ele tem sempre uma história melhor que a outra pra contar. E me conta cada uma que até fico sem jeito, meio desconfiado, principalmente pela fama longamente adquirida de não ser muito amigo da verdade. Não mente, apenas gosta de florear o acontecido. Mas ouço prazerosamente assim mesmo, pois a cada causo sempre algo interessante a ser rememorado ou forjado no pensamento.
Na verdade, a maestria no proseado de Cardosinho está no baú antigo que vai reabrindo. Que seja num misto de invencionice e acontecido, a verdade é que o homem tem uma memória de livro. Foi dele que ouvi, por exemplo, o real motivo de dois desafetos coronéis nordestinos voltarem atrás num acordo de paz compromissado com a governança estadual: o governador chegou ao sertão com acordo escrito para ser assinado pelos dois, mas nenhum sabia sequer rabiscar garrancho. E no mesmo instante a guerra foi reaberta e a liderança maior tendo de fugir já sob chuvarada de bala zunindo de todo lado.
De sua lavra é também o relato de como as forças políticas de antigamente ganhavam eleições e se mantinham no poder. Contou-me da fila de votação sob a vigília de capatazes armados até os dentes, como forma de intimidar e fazer relembrar em quem deveriam votar. Mas nem precisaria ser assim, pois a urna já batizada no meio da noite. Daí que sempre com muito mais votos que o número de eleitores. E também do bilhete que foi encontrado numa delas: Tonico, no meu querer o voto era seu, mas num tenho querer.
E também acerca dos procedimentos preparatórios para o favorecimento do candidato governista. Num tempo de entrega de títulos às vésperas da eleição, dificilmente chegavam aqueles de eleitores tendentes a votar na oposição. Quando chamado a se pronunciar sobre o assunto, o juiz eleitoral sempre dizia que fosse reclamar com o papa. E o próprio Tonico, candidato forte entre os desfavorecidos, até hoje procura seu voto que desapareceu. Não teve nenhum na seção onde toda a sua família votou.
Mas a força prosista de Cardosinho estava mesmo noutra história que sugestivamente chamava sentenças ao molho pardo. Um interessantíssimo relato sobre o funcionamento da justiça nos tempos idos e o que acontecia quando a lei vivia de braço dado com a política ou o poder local interiorano. Num tempo onde os poderes se misturavam e era clara a influência de um sobre outro, muitas decisões eram tomadas em respeito aos iguais e como forma de manutenção do compadrio explícito: o juiz amigo e obediente ao líder político, este oferecendo benesses àquele, o que acabava sempre em favorecimentos exacerbados.
Segundo Cardosinho, muitos dos julgamentos ocorriam sem que precisasse haver a ouvida das partes, de testemunhas ou instrução do processo, nem que qualquer dos litigantes fosse chamado à presença do magistrado. Noutros casos, quando o processo já tramitava normalmente, de repente o juiz chamava o feito à ordem e imediatamente sentenciava. E tudo isso por causa dos acertos e conchavos entre a lei e o mando local. Bastava que um bilhete chegasse à mesa do julgador e o nome do litigante ali escrito logo recebia sentença favorável.
Certa feita – esmiuçou Cardosinho – um sujeito foi preso porque no seu cercado foi encontrado um animal levado na calada da noite do terreno de outro. O caso foi levado ao juiz que, por sua vez, deu imediato conhecimento ao prefeito. Precisava saber se era gente sua ou de família opositora, de modo a sopesar os rigores da lei. Sabendo que era protegido do amigo, logo decidiu não só expedir imediato alvará de soltura como passar a propriedade do animal roubado para o próprio ladrão. E sob o argumento de que se o indivíduo havia empreendido tanto esforço para levar às escondidas um burro brabo até seu cercado é porque realmente estava precisando muito mais dele que o antigo dono, que não mantinha o devido cuidado com o mesmo.
Cardosinho prosseguia dizendo que era uma situação verdadeiramente absurda. Toda a justiça local era apadrinhada do poder de curral, sob os auspícios do poder estadual. Desse modo, para a manutenção do mando, do poder, da força política, a liderança situacionista local tinha no judiciário uma das armas mais poderosas e eficientes. Ora, com a maioria do povo temendo a justiça – ainda que a ela não devesse nada – e o mando local agindo em conluio com o magistrado, então não havia como não se manter refém do poder.
Digno de nota a descrição pormenorizada feita por Cardosinho acerca das sentenças ao molho pardo. Segundo ele, quando a pendenga judicial se mostrava como uma questão mais grave ou tendo por réu de crime gravoso algum apadrinhado da liderança política, então o caso era logo remetido às vias da gula e do brinde. O magistrado era convidado a compartilhar uma suculenta galinha ao molho pardo e ali, na residência senhorial, entre bebidas e gracejos, as conversas ao pé de ouvido acabavam em sentenças de absolvição.
Para todos os efeitos morais e legais, o processo prosseguiria, mas a justiça já havia sido brindada e saboreada fartamente. Quanto mais a galinha de capoeira cheirava e o caldo se mostrava suculento, mais as coisas iam sendo resolvidas com facilidade. E assim os julgamentos ali mesmo, com sentenças ao molho pardo. Cardosinho dizia mais, mas é melhor ficar por aqui. Também não precisa dizer tudo dos bastidores da lei e do mando. A gula é grande, mas o cheiro não é nada bom.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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