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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 22 de novembro de 2019

O PAPAGAIO DE DONA ZEFA



*Rangel Alves da Costa


Dizem que o papagaio de Dona Zefa da Guia já rondava aquelas paisagens sertanejas antes mesmo do surgimento do quilombo no alto da Serra da Guia.
O Quilombo Serra da Guia, no município sertanejo de Poço Redondo, surgiu como reduto escravo em tempos já muito idos. No tempo da escravidão, os negros fugitivos fizeram refúgio no alto de uma serra alta, chamada de Serra da Guia.
E o papagaio de Dona Zefa, no voo incerto que fez, foi parar exatamente no alto daquela certa, como por outras serras já havia passado e repousado desde os arredores das aldeias indígenas às senzalas de açoite e chibata.
Sua chegada ali se deu nesse percurso papagaiado. Coisa pra mais de trezentos anos, ou mais até, pois há uma conversa dando conta que ele chegou num dos navios do descobrimento do Brasil.
Assim que se viu em terra, pulou do umbro do português e fez voo sem direção, vindo parar nestas distâncias. O marinheiro tudo fez para recuperá-lo, mas o louro até zombava de seu algoz. Queria mesmo a liberdade e assim foi voando, voando, voando...
Quando Dona Zefa nasceu o papagaio já era tido como velho na casa, mas o tempo foi passando e ele só na dele, como um Matusalém das caatingas. E bote Matusalém nisso, vez que ele mesmo dizia que já havia sido muitos naquele mesmo corpo de papagaio.
Depois Dona Zefa levou o louro para sua companhia e até hoje o danado se mostra ativo. Ativo e famoso.  Não tanto quanto a sua dona, ainda assim muito afamado. E por várias razões.
Parecendo eternamente repousando perto da cumeeira entre a sala da frente e a entrada das demais dependências da casa antiga, o louro famoso vive ali à espreita de quem passa pela frente, quem chega chamando, quem entra e quem sai.
Mas que ninguém se atreva a chamá-lo de fofoqueiro, pois ouvirá uma resposta tão desbragada que é melhor nem citar. Todo dia sua dona reina com ele, mas não tem jeito. O motivo dos xingamentos de Dona Zefa não é outro senão a língua solta e ferina demais do papagaio.
Chega mulher barriguda na porta e ele logo diz: “De novo? Mas não é possível que você só leve a vida a fazer menino, pois todo dia tá aqui dizendo que tá perto de parir. Feche essas pernas, muié!”.
Ouve-se dizer que certa feita chegou um afeminado e cheio de trejeitos batendo palma e chamando Dona Zefa, certamente em busca de alguma reza para curar um mau olhado ou coisa parecida. Mas o papagaio disse assim que avistou: “Nem venha que não tem. O seu negócio não tem reza que dê jeito. Mas uma boa surra de cansanção talvez fizesse você se endireitar um pouquinho”.
Acaso chegue um com cara de doente, então ouve do danado: “Nem precisa Dona Zefa rezar, eu já sei o seu mal. Vá trabalhar e deixe de tomar cachaça que fica bonzinho!”. E de repente se ouve, ante a chegada de alguém que ele não gosta: “Dona Zefa não está, pode voltar, chispa daqui...”.
Aí vai Dona Zefa e grita de lá de dentro dizendo que está, e então o papagaio vira numa fera: “Deixe de ser mentirosa, a senhora não tá não!”. E assim o papagaio vai fazendo fama.
E se acaso você for até a Guia visitar Dona Zefa, então torça pra que o louro se agrade de sua chegada. Do contrário será, no mínimo, chamado de feio e convidado a se retirar. Assim mesmo, na cara de pau.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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