*Rangel Alves da Costa
O sertão possui o seu tempo próprio. O seu
calendário é o das estações, dos períodos mais chuvosos ou menos chuvosos, dos
meses ou anos mais secos ou de menor estiagem. Bem assim o seu vivente, o
sertanejo. Cada homem da terra igualmente possui seu próprio relógio. Que se
diga também que o seu amanhecer é num tempo diferenciado, que seu meio-dia
possui hora certa para chegar, que o seu entardecer e anoitecer é de outra
marcação no ponteiro.
Não adianta que digam que tudo deve ser feito
segundo o horário oficial. Não adianta que digam que a noite vai das dezoito
horas até a madrugada, e que esta se prolonga até o alvorecer. Será perda de
tempo dizer a hora que se deve deitar e acordar ou o instante certo do café da
amanhã, do almoço ou do jantar. Até porque em grande parte do sertão não há
essa história de café da manhã ou muito menos de desjejum nem de almoço, lanche
ou café da noite ou jantar, pois tudo comida. E a hora da comida é qualquer
hora, segundo o relógio sertanejo.
Galinha sobe ao poleiro na hora que se cansa
de ciscar, põe seus ovos na hora que bem deseja e desce para novamente ciscar a
qualquer instante do alvorecer. Não tem essa história de esperar o galo cantar
de jeito nenhum. E quem canta primeiro, antes mesmo do galo e do sino da
igrejinha, é a porta de trás de cada casa cabocla. Quando a porta range se
abrindo é por que o sertanejo já acordou e já levantou, ainda que pelos
arredores e matarias ainda esteja tudo escurecido demais.
Até a natureza sertaneja não está nem aí para
essa coisa de horário marcado. Quando noutros lugares está tudo escuridão, o
céu sertanejo apresenta cores e barras avermelhadas que muito dizem sobre as
secas e as chuvaradas. A mata silencia durante o dia e murmureja e até grita
depois da boca da noite. Também o pôr do sol é mais tardio e mais prolongado. O
braseiro do fogão de lenha já está se tornando em cinzas e lá em cima, por
detrás das serras, ainda o braseiro do sol se esvaindo em sua última chama. Mas
a lua já apareceu. E assim por que o luar do sertão é tão grande e fulgurante
que logo se cansa e vai embora antes mesmo de o homem acordar. Por isso que ele
acorda numa inexatidão de cor nos espaços.
Quando se diz que no sertão o tempo é marcado
pelo compasso do homem, sempre será no sentido de afirmar que tudo acontece
perante a necessidade de acontecer. Como as necessidades são sempre grandes,
então o sertanejo apressa o seu tempo para ajustá-lo ao que deva ser feito. Daí
os dias parecerem mais longos e os noturnos muito mais estreitos. Por lá não
existe essa história de um repouso de oito horas. Dorme-se apenas o tantinho
para descansar e depois já se levanta num pulo. Por isso mesmo que o sertanejo
já está em pé antes mesmo dos bichos do quintal e da mataria.
No sertão, tarde da noite já é madrugada
aberta. E assim porque a contagem do tempo respeita outra ordem, outro desejo
do homem da terra. Hora do café da noite é no mais tardar às cinco da tarde.
Seis da noite o prato já foi lavado, tudo já foi arrumado, só faltando pouco
tempo para apagar o candeeiro. De seis horas em diante já é hora de deitar, e
muita gente deita mesmo a partir desse instante. Com tudo já sombreado, no breu
da noite, não há motivação alguma de continuar perambulando por ali ou acolá.
Somente quando é noite de lua cheia é que o
sertanejo se demora mais um tiquinho. De vez em quando lança mão da viola de
pinho e ecoa uma moda lamentosa demais. É quando uma pinguinha é levada à boca
e mais um acorde ou outro para fechar o dia. Às oito da noite já não resta
nenhuma porta aberta. Todo mundo já dorme, já busca seu prazer, já sonha com um
mundo melhor. Quando já está tarde da noite somente os grilos fazem festa, os
gatos soltam seus gemidos, as almas penadas vagam sem ninguém encontrar.
Quando a madrugada chega já é hora de acordar
pra muita gente. Antes mesmo que o galo cante muito sertanejo tá ajeitando seu
aió ou embornal para sair pelo mundo, pelo meio do tempo no seu afazer de todo
dia. Mexe pelos cantos da casa, procura os apetrechos dos ofícios, bate aqui e
bate acolá, desenferruja o que desde muito estava guardado. Depois vira um gole
de café, joga na boca um punhado de farinha seca e tudo já está pronto para ser
começado. Assim todo santo dia, assim na hora e relógio da precisão sertaneja.
Mas nem é todo sertão é assim. Somente nas
distâncias matutas, no sertão sertanejo de vera, como se chama por lá toda a
verdade existente.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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