SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 25 de abril de 2016

ASSIM COMO UM POEMA DE MANOEL DE BARROS


*Rangel Alves da Costa


Na terra seca, esturricada de sol, e de repente surpreendida pelo pingo d’água, logo vai subindo o barrufo perfumado a esperança. Nas entranhas da mata, as folhagens rasteiras se abrem e se fecham. Sons e sombras vão e voltam em instantâneos da vida: os bichos do mato em seu habitat e afazeres de canto a outro. O grilo cricrilando, dia e noite, seu som inconfundível. É sempre ouvido e nunca encontrado, assim como mais um mistério da natureza. A borboleta adentra pela janela, faz seu rasante, pinta de cor as velhas coisas e as velhas paisagens depois vai embora. A plantinha resseca e morre mesmo sendo aguada todos os dias, mas outra, bem ali na proximidade, floresce com flor avermelhada e sem nenhum cuidado. A ponta de pedra não, mas o espinho sempre permanece escondido por cima da estrada. E não há sola de sapato que se veja livre de sua pontuda, pois parece armado em punhal para ferir. O pardal deixa a mata e vem morar na cumeeira da casa. Suja tudo, é espantado, mas não vai embora. Será preciso que chegue o gavião para expulsá-lo dali. Ou sai ou vira carniça. Assim como aquela que o urubu saboreia no meio do tempo. Bem a seu lado, a pedra tudo observa e permaneça calada. Sabe que é melhor calar e fechar os olhos diante do urubu. Tudo acontece assim, assim como um poema de Manoel de Barros.
No tempo seco, o riacho morre, a fonte morre, o tanque morre, o bicho morre, a vida morre. Na manhã seguinte ao pingo d’água caído, e tudo já estará diferente, não de verdeja e brotar, não de juntar água e escorrer, não de renascer para a vida, mas tudo respirando diferente, demonstrando ainda força para viver. Somente o calango suporta a pedra quente, escaldante, brasa viva no meio do tempo, debaixo do sol. Mas é sua ligeireza que o faz suportar o fogo do tempo. Nem pé bate o pé na brasa e já estará salteando na brasa seguinte, e assim por diante. Triste é presenciar a solidão e o sofrimento do mandacaru. Dia e noite debaixo do tempo aberto, recebendo sobre seus braços abertos o sol e a lua, só lhe resta tempo para a oração. E quanta prece nasce em cada mandacaru do sertão nordestino. E é a única espécie que resiste a tudo sem esmorecer de vez. A palma seca, o xiquexique seca, o facheiro seca, tudo seca, tudo esfarela, tudo fenece. Mas ele continua impávido em sua contínua oração. Mais adiante, em cima do pé de pau de folhas mortas, o ninho de passarinho resta abandonado. A cobra subiu lentamente e engoliu o peloco, o bichinho nascido na noite anterior. Mas assim é a lei da sobrevivência na mataria, pois a mesma cobra teme ser abocanhada pelo bico do gavião. E o gavião nem suporta avistar o menino adiante com a peteca baleadeira à mão. Sabe que basta uma pedrada certeira e será o seu fim. Assim como o fim de tantos passarinhos que piaram pela última e depois foram parar em cima do braseiro do fogão de lenha. Tudo acontece assim, assim como um poema de Manoel de Barros.
As pequenas coisas, a singeleza e os pequenos encantos da vida, tudo como num poema de Manoel de Barros, assim avistados nos primeiros versos de “O menino que carregava água na peneira”:

Tenho um livro sobre águas e meninos.
 Gostei mais de um menino
 que carregava água na peneira.

A mãe disse que carregar água na peneira
 era o mesmo que roubar um vento e
 sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.

A mãe disse que era o mesmo
 que catar espinhos na água.
 O mesmo que criar peixes no bolso
............................


Assim, em tudo há poesia, no grande e no pequeno da vida. O grilo é poesia, o sabiá é poesia, a pedra é poesia, o vento é poesia. O menino que brinca num quintal com sua fazenda de ponta de vaca não passa simplesmente seu tempo de criancice, mas faz poesia. Bem assim o caroço de feijão que se negou a cair na panela e foi varrido para o quintal e aí brotou o inesperado. Tudo é poema. Assim como um poema de Manoel de Barros.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Um comentário:

Ana Bailune disse...

Todo cenário é composto por alguma beleza. Cabe aos poetas encontrá-la, e retratá-la.