SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

O FAMOSO REGABOFE


*Rangel Alves da Costa


O mais famoso regabofe da história nordestina foi posto à mesa entre hóstias e balas de rifles, entre água benta e cartucheiras. E para a serventia do sagrado e do profano, para deleite da fé e do destemor, para proveito da cruz e da espada. E assim porque o famoso regabofe foi servido em mesa onde se juntava na mesma fome a igreja, através de sacerdote, e o cangaço, por meio de seu líder maior.
O ano era 1929, o mês era abril. Neste mês a população devotada do pequeno arruado de Poço Redondo se preparava para a celebração de missa na Igreja de Nossa Senhora da Conceição. Missa era raridade naqueles tempos, principalmente pelo fato de o sacerdote viver em ocupações na sua paróquia de Porto da Folha, se dirigindo àquela povoação somente duas vezes ao ano: 15 de agosto, na festa da padroeira, e noutra data escolhida pelo povo.
Assim, para a celebração do dia seguinte, numa data escolhida, ao entardecer do dia 18 de abril o vigário Padre Artur Passos despontou nos arredores do lugarejo em cima de lombo de burro. Era uma viagem cansativa de Porto da Folha até Poço Redondo, entrecortando perigosas e poeirentas estradas de chão. Cansado, se recolheu na casa do amigo Teotônio Alves China - o China do Poço -, onde logo adormeceu para chamar a si sonhos terríveis: Homens rudes e cheios de armamentos chegavam para confrontar sua igreja e sua cruz. Quanto mais jogava água benta mais eles avançavam sobre o templo cristão.
Acordou sobressaltado. Não imaginava o que logo mais ocorreria ali na residência dos bons e acolhedores China e Marieta, sua esposa. Com efeito, com o dia já clareado, homens estranhos ao lugar, todos revestidos de roupas grossas e suor, com brilho dourado se derramando pelos dedos e chapéus de abas largas e levantadas, cartucheiras vistosas perpassando os peitorais, bornais enfeitados, portando armas e punhais, chegaram pelos arredores da povoação e foram logo procurando a casa de China. Já traziam informação certeira acerca daquele que lhes daria acolhida.
Lampião e seu bando surpreendiam mais uma vez. O medo então se espalhou pelo lugar. Quando a notícia começou a correr, no mesmo instante começaram os desmaios, as carreiras, o deus nos acuda. A povoação pronta e cheia de alegria para a festança e a missa, logo se viu tomada de pavor indescritível. Preciso foi que o próprio Capitão intercedesse afirmando que estava ali de passagem e que havia chegado na paz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Bastou o eco da fé e da religiosidade para que a vida retomasse seu passo.
Mas a calma com as palavras do Capitão não chegou para China e Marieta. Pelo contrário, estavam mais apavorados e temerosos que tudo. E por um só motivo: O que fazer com Lampião ali no alpendre e o sacerdote no quarto? Acaso o da igreja abrisse a porta e se deparasse com o da caatinga, as consequências seriam inimagináveis. Enquanto China se remoía por dentro, Dona Marieta se lançava em rezas e promessas. Mas num repente o dono da casa resolveu dar um basta naquela aflição toda. Então contou ao cangaceiro sobre a presença do sacerdote.
Prontamente Lampião afirmou a China que não se preocupasse e se dirigiu até o aposento onde ainda repousava o Padre Artur. Bateu à porta, chamou, se anunciou. Sem acreditar no que ouvia, o costumeiramente mal-humorado sacerdote abriu a porta esbravejando. Num instante e frente a frente a igreja e a sangrenta valentia. As mais de cem Ave Maria de Dona Marieta surtiram efeito neste momento, mas não antes que o rei cangaceiro ouvisse poucas e boas do padre, principalmente quando aquele informou que tinha interesse em assistir missa.
Depois de muito conversar, enfim o padre resolveu aceitar dividir a mesa com o cangaceiro. Pelo adiantado da hora, o que era para ser um café da manhã acabou se transformando em almoço, num regabofe arretado de interessante. Há de se imaginar Lampião e Padre Artur brindando com vinho de jurubeba, se deleitando gulosamente com a diversidade de pratos caipiras preparados por Dona Marieta. Por essa hora já estavam prontos a buchada, o sarapatel, cozidos e mais cozidos.
Talvez a admiração diante tanta comida tivesse diminuído os rompantes de fúria do sacerdote, pois não demorou muito e o proseado descambou em diálogo amigueiro. E também a aceitação para que a cangaceirada assistisse o ofício religioso, desde que o armamento pesado ficasse do lado de fora da igreja. Dizem que Lampião explanava com profundo conhecimento sobre a fé e a religião, e não menos interessante o que o velho sacerdote conhecia do mundo cangaceiro, afirmando até mesmo que não fosse pela desmedida violência até que seria uma justa causa.
Foi assim, naquele dia 19 de abril de 1929, que se deu o encontro da cruz e da espada e o mais famoso dos regabofes. Duas vertentes numa mesma feição do mundo sertanejo. A profunda religiosidade e a luta constante. Na fé e no sangue, pois o homem também vítima de outros destinos que não o da paz.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com 

Um comentário:

Mendes e Mendes disse...

Parabéns, escritor Range! Excelente, aliás, tudo que o mestre escreve, é com muita criatividade.