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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 10 de junho de 2016

COME-SE DO QUE SE TEM NO PRATO


*Rangel Alves da Costa


Desejar viver bem, ter o melhor e nada faltar, é perspectiva justa que todo mundo deve ter. Viver bem, poder acrescer sempre mais e ainda realizar tudo aquilo que deseja, igualmente se torna merecimento a todo aquele que pela luta chega ao patamar da bonança. Em situação tal, onde o preço da feira ou a conta do almoço não causa nenhum desfalque, compreensível que possa ter sobre a mesa o melhor e mais variado prato.
Ora, uma gente assim pode muito bem chegar num restaurante chiquê e mandar descer o que quiser do cardápio, mesmo que sequer saiba o que significa o nome do prato, pois geralmente noutra língua. Então o garçom vai trazendo tiquinhos até o momento do prato principal, e este consistindo apenas numa pequena porção enfeitada no meio da porcelana, tendo ao lado um filete de carne ornado com um raminho de folha. Não come tudo, porque é feio a burguesia esvaziar o prato, permanece com fome e paga uma verdadeira fortuna.
Também não é diferente nas refeições à própria mesa. Come-se pouco, quase nada, e uma comida sem gosto, sem sustança, sem encher barriga. Uma taça de água, outra de vinho, um queijo importado, um fruto do mar, um naco de carne, mas tudo tão pouco que nem parece comida de mesa. E come-se assim, tão pouco e tão mal, pelas exigências do próprio status. Tem de manter a elegância, a postura, a finura, e tudo devendo começar pela moderação nos hábitos alimentares.
Mas sente fome, fraqueza, uma vontade danada de se esbaldar perante uma comida farta, muita, comendo sem etiqueta e se servindo de mais. Então sente saudade de um pirão de mulher parida, de uma galinha de capoeira bem gorda, de um sarapatel de porco, de um mocotó bem visguento, de uma panelada de carne de gado misturado com carne de porco, de fígado grosso acebolado, de carne na brasa, de um churrasco completo, de uma feijoada feita no dia anterior. E comer com voracidade, gulosamente, se servindo com a mão e não tendo vergonha de se lambuzar.
Contudo, pensando bem, há uma relação tanto de proximidade como de distanciamento entre aquele que muito tem, porém quase nada come por estética e vaidade, e aquele que pouco ou quase nada tem, mas come tudo que consegue por necessidade. Nos dois há uma pobreza alimentar, sem dúvida. Enquanto um come mal porque assim deseja, o outro come muito mal porque lhe falta comida. A riqueza se torna pobre por desejo próprio e a pobreza deseja a fartura sobre a mesa. Quando o alimento está à frente dos dois, não há que duvidar que somente o necessitado saiba valorizar cada porção e cada sabor.
Somente aquele que passa fome, que passa dias e mais dias com o fogão de lenha apagado e a panela vazia, sabe valorizar o alimento conseguido depois de tanto sofrimento. O grão, o pedaço, o pacote, o quilo, o pouquinho, o tantinho e até o restinho, tudo se torna de indescritível importância ao desvalido. Somente ele conhece a dor de ouvir um filho chorar com fome e não ter sequer um pedaço de pão. Somente ele sabe o martírio de se ter diante da hora do alimento e nada restar para ser colocado à mesa ou mesmo no fundo de um prato de estanho.
Há de se conhecer, de sentir, de ser forte para não chorar. Um casebre de barro batido, sustentado em garrancho e cipó, e lá dentro três ou quatro, cinco ou seis, desvalidos de quase tudo, principalmente do alimento do dia a dia. Sonha-se com uma tripa de porco, com um pedaço de toucinho, com uma fatia de bucho, com qualquer coisa que possa enganar a fome. Sem o preá, sem o nambu ou a codorna, sem o teiú ou qualquer caça de mato, não há esperança que chegue à boca em forma de comida. Daí o fogo apagado, a panela esquecida num canto, o prato vazio e a mesa coberta de olhares aflitos. E famintos.
E há falta de tudo mesmo. Quando não tem uma coisa, porém resta um tantinho de outra, ainda se dá um jeito, ainda é possível enganar a fome da meninada. Mas de repente não há mais farinha de milho, farinha de mandioca, arroz, café e açúcar. O quilo de carne só deu para dois dias, os outros quilos e pacotes se foram no mesmo passo. Passa um calango e o maiorzinho corre atrás. Depois retorna com o bicho estatelado. O pai, com o coração apertado demais diante da situação, não encontra outra solução senão fazer o fogo abrasar.
Há uma fome tal, tão feia e voraz, que não pode negar qualquer comida. Come-se, verdadeiramente, do que se tem no prato, sem escolhas ou cara feia. O menino do calango assado não gostaria de mordiscar seu amiguinho de meio de mato. O pai de família, acostumado ao trabalho para dar pão à família, não vai bater em porta de ninguém com a mão estendida. Contudo, o coração se aperreia e os olhos marejam toda vez que vai chegando a hora do alimento e nada há para oferecer aos pequeninos.
Diante do prato vazio, do fogão apagado, daquele olhar entristecido no canto da parede, só mesmo Deus para encher a colher. Esta pode não estar cheia, mas a sobrevivência vai sendo garantida como verdadeiro milagre.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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