SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 27 de junho de 2016

NOTURNOS


Rangel Alves da Costa*


Já são mais de sete horas da noite. Um pouco mais. Depois de alguns poucos fogos do São João, agora o silêncio na rua nua, vazia, triste, sonolenta. Mas muito mais por causa da chuva do que qualquer outra coisa. Chuviscou o dia inteiro, e agora a chuvarada se fez mais forte. Sempre acontece assim ao anoitecer dos invernos e dos dias de nuvens prenhes.
Ouço a chuva lá fora enquanto escrevo. Nunca faço assim, pois busco o maior silêncio possível enquanto rabisco pensamentos e memórias, mas hoje me vejo dividido em dois sons diferentes: da chuva descendo lá fora e da música clássica chegando da vitrola na estante logo atrás. A chuva ora mais forte ora mais fraquejante, a música apenas ouvida, baixinha, como se estivesse distante.
Contudo, impossível escrever em meio à chuva e à música clássica. Tal receita é, comprovadamente, perigosa demais aos sentimentos. Chuva e música invadem o âmago, o espírito, a alma, como se desejassem possuir o ser inteiro. Seus acordes fazem voar, fazem chorar, fazem sorrir, fazem delirar. Seus suaves ecos trazem nostalgias, recordações, lembranças vivas e tantas outras que ressurgem para afligir.
Na noite, os pingos caindo, a rua molhada, o asfalto negro em espelho d’água, a ternura jamais imaginada noutro instante do dia. A rua da velocidade, do barulho, da gente passando, da gente correndo, da algazarra do dia a dia, se transforma em sentimentalista assim que chove cai. As portas fechadas, as pessoas recolhidas, os caminhos vazios, tudo faz aumentar a sensação de uma paz aflitiva, de uma meiguice dolorosa, de uma alegria entristecida.
A chuva na noite tem o dom de provocar tudo isso. Como uma doença que sempre desperta após o entardecer, assim as sensações afloradas quando a chuvarada começa a cair debaixo do negrume da noite. Sem lua, apenas a luz amarelada dos postes refletindo os pingos que caem, não há olhar que não se faça poeta, não há coração que não se aflija, não há pensamento que não se encha de recordações. E todo o ser se entrega à magia do noturno molhado, se derramando na rua e escorrendo por toda a alma.
A chuva em si já é melodia. Através dela ouve-se a sonata, a sinfonia, o prelúdio, a valsa vienense, o piano em viagem pelos ares, o violino em voo distante. Na rua molhada um grande salão, ou apenas uma sala escurecida com candelabros e incensos, e em meio a tudo, sobressaindo-se a toda paisagem e a tudo que surja, a doce música, a bela música da chuva, uma orquestra de cordas e de sensações.
Vejo-me assim. Lá fora a doce música, a orquestra se derramando, e aqui dentro, pertinho de mim, a outra música nascida dos grandes mestres. Imensa admiração por Bach, Chopin, Mozart, Beethoven, Vivaldi, Lizst, Ravel, Brahms, Haydn, Wagner, Stravinsky, Paganini, Mahler, mas em noturnos assim, como o chuvoso de agora, guardo preferência por Strauss e suas famosas valsas, Tchaikovsky e sua belíssima Valsa do Lago dos Cisnes, mas principalmente Offenbach. Não há como não se encantar com sua Barcarolle, intermezzo de Os Contos de Hoffmann.
Em noites assim, ouvir Barcarolle é um navegar, é um voar, é um distanciar-se de tudo e continuar planando pelos sentimentos devassados em sorrisos e lágrimas, em dores e alegrias, em abraços e beijos e acenos de adeus. Barcarolle é barca que se alonga águas adentro do espírito, é nau que singra nas distâncias da alma. E nesse azul imenso, em busca de uma ilha qualquer jamais encontrada, navegando vou ao soprar da memória.
Mas a música e a chuva me impediram de prosseguir com o texto. Por motivos óbvios, fechei os olhos e deixei que tudo fluísse ao seu açoite e remanso. Acordei umas três da madrugada e a chuva ainda caindo como na noite anterior. E a mesma música em mim, dentro de mim. Até que a manhã desperte de vez e a rua molhada deixe de ser poesia para ser somente caminho.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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