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quarta-feira, 1 de junho de 2016

GAVIÕES, CARCARÁS E URUBUS: UM SERTÃO COM CHEIRO DE CARNIÇA E MORTE


*Rangel Alves da Costa


Por suas próprias peculiaridades, o sertão é terra de bicho agourento e ave carnicenta. Bicho que vive na expectativa de lançar as garras naqueles desvalidos pelas circunstâncias ou na sutil espreita de outro bicho caído de fome e fraqueza para sangrar e acabar de matar. Para sobreviver, uns se alimentam de outros, ainda que os restos já tenham se transformado em putrefação e carniça.
Bezerro novo, distante da mãe, quanto mais mirradinho, fraco e desajeitado, logo se torna presa fácil às avoantes carnicentos que rondam pelos arredores. Vaca magricela, sem força sequer para catar a sequidão do capim, afastada do rebanho, torna-se como em prato desejado por muitos. Bem assim com o cavalo, jumento ou jegue, que ferido e abandonado não manhã seguinte se avistado pelos farejadores de carne viva.
Uma cena triste, lamentável, mas ocorrido sertões adentro. A vaca se afastou para catar comida e deixou seu bezerrinho no sombreado de um umbuzeiro. Foi se distanciando cada vez mais sem se dar conta do perigo que a sua pequena cria corria. Eis que um carcará faminto, de bem do alto, lançou seu olhar e avistou o que tanto desejava. E foi se achegando lentamente, observando se havia a presença de outros animais, para em seguida dar o bote certeiro sobre os olhos do bezerrinho. Sangrou, cegou, depois começou a perfurar o seu corpo com seu pico afiado e pontudo. Logo os urubus sentiram o cheiro de sangue e cuidaram de aproveitar o banquete.
Na distância onde estava, mesmo percebendo a estranheza de tantos urubus rondando em profusão, a vaca sequer imaginava o que estava ocorrendo com sua cria. Somente ao retornar é que se deparou com a lamentável cena. Avistou somente a carcaça do bezerrinho. Apenas ossos sujos de sangue. Berrou, mugiu, gritou sua dor, chorou todo o seu pranto. Desesperada, aproximou-se mais e começou a lamber aqueles restos, que eram restos de si própria, pois ali também suas entranhas. E depois. Como que entorpecida, deitou ao lado e aí permaneceu. E ficou para nunca mais levantar. Decidida a não se afastar daqueles ossos miúdos, foi fraquejando até não ter mais força para retomar seu destino.
Mas nunca esteve sozinha, em nenhum momento. Desde o seu retorno que olhos ávidos, vorazes, sedentos de carne e sangue, se mantinham como que entrincheirados acompanhando o instante certo para atacar. Olhos carnicentos, bicos feitos punhais para sangrar, garras afiadas para estraçalhar a vida. Urubus, carcarás, gaviões e outros bichos, fazem assim. Como cobra ruim que se abriga à beira da estrada, por semanas ou meses à espera do calcanhar certo para atacar, do mesmo modo agem os cruéis assassinos do sertão. Numa ato de terrível crueldade, nem esperaram a vaca dar seu último suspiro. Aproveitaram-se da fragilidade e perpetraram a ação de sempre: atacar pelos olhos, cegar, e depois dar conta do resto. Até deixar somente a carcaça.
As épocas das secas grandes, das estiagens prolongadas, quando os bichos emagrecem, afinam e, sem forças, vai caindo de passo a passo, então tudo se torna uma festança para os carnicentos. Fragilizadas demais, as crias não possuem qualquer força para se defender. Torna-se perigoso andar pelos pastos ou mesmo descansar em qualquer lugar e muito mais quando há um tombo e essa queda se torna em agrura. Muitas vezes não há nem tempo de esforçar para levantar ou ser socorridas, vez que as garras e os bicos de repente já estão por cima sem dar a menor chance de salvação. O fim é inevitável.
Por isso que ao lado do sofrimento pela seca, da angústia sem fim em ter o bicho faminto e sedento sem nada poder fazer, o sertanejo ainda tem de espantar o agouro que ronda o seu curral. Acaso coruja comece a piar noite adentro, coisa boa não acontecerá. É sinal de que a carniça logo vai se espalhar pela terra esturricada. O pior é que não há nada a fazer. Não pode fazer vigília noite e dia para que os carnicentos não ataquem. E sabe que ele mesmo corre perigo. Só tem o couro e o osso. E sabe que gavião e carcará maltratam até a vida humana.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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