SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

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terça-feira, 28 de junho de 2016

O OUTRO


*Rangel Alves da Costa


E se de repente a pessoa deixa de ser quem é perante os demais, e até com consigo mesma? Não pela mudança de comportamento ou do jeito costumeiro de ser, mas por que passou a ser outra, porém sendo ela mesma.
Assim aconteceu...
Ele levantou e a primeira coisa que fez ao amanhecer foi registrar alguma coisa num pequeno caderno. Estranhou, porém, que o nome inscrito na capa não era o dele, mas outro totalmente diferente.
Talvez estivesse com o olhar ainda pesado do sono, foi o que pensou antes de jogar o caderno numa gaveta e sair do quarto. Não demorou muito e ouviu, vindo do outro lado do muro: “Seu Marcos, seu leite chegou”. Marcos, mas quem é Marcos, aqui não existe nenhum Marcos. Ele quase gritou, sem nada compreender.
Já adiante do portão, seguindo rumo aos afazeres cotidianos, a primeira coisa que ouviu foi: “Bom dia, Seu Marcos!”. Estava apressado demais para dizer que o seu nome não era nem nunca havia sido aquele. Aquilo já estava passando dos limites, imaginava cheio de indagações. Primeiro o caderno, depois a mulher do leite e agora o vizinho. Mas quem será esse Marcos?
Ao chegar numa repartição pública, a primeira coisa que a funcionária fez foi pedir seu documento de identidade. Tirou do bolso a carteira e logo estendeu sua identificação. E novo espanto ao ouvir: “Marcos de Almeida e Castro, é o senhor mesmo?”. Imediatamente respondeu: “Não, meu nome não é Marcos, é Paulo de Almeida Castro. A senhora deve estar enganada”.
“Desculpe, seu Marcos, mas eis a sua identidade com o seu nome, a sua digital, a sua fotografia, tudo. O senhor é que deve estar enganado com o tal Paulo que mencionou. O documento está claro: Marcos de Almeida Castro”. Sem saber mais o que fazer, ele retirou todos os documentos da carteira e jogou-os à mesa. E Marcos, Marcos, Marcos, em todos eles.
Largou tudo ali mesmo e saiu em correria da repartição. Não podia ser, aquilo não poderia estar acontecendo, dizia em voz alta enquanto chutava um muro do lado de fora. Foi quando avistou uma conhecida e saiu desesperado em sua direção. “Diga, por favor diga se eu estou maluco, diga se eu enlouqueci. Diga...”.
“Mas o que é isso Seu Marcos, o que aconteceu com o senhor para estar assim desse jeito. O que aconteceu, Seu Marcos?”. Mais uma, não, agora chega, isso já está virando brincadeira de péssimo gosto, resmungava após ter deixado para trás sua conhecida. Mas eu não estou maluco, eu não sou maluco. Meu nome não é Marcos, não é Marcos, não é Marcos. Nasci Paulo e vou morrer Paulo...
Completamente atordoado com a situação, já falava sozinho sem se importar com os olhares desconfiados em sua direção. Chegou praticamente correndo ao portão de casa, evitou falar com qualquer pessoa, e num instante já estava revirando tudo que pudesse revelar seu verdadeiro nome. Mas somente Marcos em tudo o que encontrava.
Já em total e terrível desespero, chorando, começou a abrir cartas e bilhetes, rascunhos de poesias, mas outro nome não encontrava senão o de Marcos. Gritou como grita o lobo angustiado na estepe. Gritou como grita o louco desejando a lua. Gritou como grita um ser tentando ser ouvido na sua desesperança.
Em seguida atirou-se num canto, colocou a cabeça entre as mãos, e chorou toda a dor encontrada. Quando mais refeito, porém ainda entre soluços, levantou e seguiu em direção à janela: Abriu-a, afastou as cortinas, se aproximou do umbral e, respirando profundo, mirou uma roseira em flor, e disse convicto: Que belo mamoeiro! Depois fechou os olhos e viu a tão conhecida roseira na mente. Ao reabri-los, falou: Minha roseira, como está tão bela.
Após, ali mesmo, dialogou em silêncio. E finalizou: Sou Paulo, sempre fui Paulo. Deixo que o mundo repare os seus próprios erros.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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