Seria a pobreza condição humana capaz de afastar o
reconhecimento do desvalido por outras pessoas, até mesmo em igual condição?
Seria o nada ter, o viver na miserabilidade, sobrevivendo apenas
do mínimo necessário para se manter em pé, algo tão terrível e capaz de negar o
auxílio na hora extrema?
Seria o viver sozinho, o ter poucos amigos, morar nas distâncias
dos centros urbanos e nas ruas de areia e barro, a justificativa para o
abandono?
Seria o abandono e a falta de reconhecimento as consequências da
pobreza, ou seria a pobreza a causa de tudo ruim que possa acontecer?
Seria humanamente justo que alguém por ser pobre, morar nos
cantos da cidade, venha a falecer e não ter ninguém que acorra para uma prece,
para velar o morto?
Ou seria apenas consequência da crescente falta de cristandade
no coração das pessoas, carência de senso humanitário ou pouco caso com quem
morre ou deixa de morrer?
De qualquer modo que possa ser visto, verdade é que um velho,
senhor de mais de oitenta anos, partiu dessa vida e na hora do velório não
havia uma só pessoa velando o morto.
Era pobre, vivia numa casinha que mais parecia um barraco caindo
aos pedaços, viúvo, sem filhos, morava sozinho. Mas havia muitos parentes seus
no lugar.
Aparentemente tinha muitos amigos. Ao entardecer, quando deixava
sua moradia e seguia até a praça principal da cidade, sentava sempre no mesmo
banco de esquina e logo era cercado por muitos.
Sua pobreza e simplicidade não afastavam sua reconhecida sabedoria,
seu dom para repassar aos mais jovens as mais diversas lições sobre a vida e
ensinar os melhores caminhos perante as tortuosas estradas.
A um dizia sobre a importância de preservar uma vida justa e
digna para ter sempre o reconhecimento da comunidade; a outro discorria sobre
os malefícios dos vícios e da vida desregrada; e ainda a outro falava apenas
sobre sua vida de tantas lutas e do nada que havia conseguido.
Sem medo nenhum, dizia sobre o tempo, ainda rapazote, quando se
meteu a ser jagunço do coronel mais importante e poderoso da região. Nunca
havia matado ninguém, mas já tinha visto muito sangue de inocente escorrer.
Contava também do tempo que inventou de ser cangaceiro do bando
de Lampião e só não foi lutar debaixo do sol porque no dia que ia se apresentar
a cangaceirada havia deixado às pressas o coito onde estava escondida.
E assim levava sua vida conversando com um e com outro,
ensinando e ouvindo, repassando lições dos tempos antigos e da vida presente.
Até sobre porções de ervas medicinais o velho dialogava.
Mas numa daquelas tardes não compareceu ao seu banco de todo
entardecer. Nunca mais voltaria ali. Aqueles que o procuraram naquele dia não
sabiam que o velho amigo havia falecido quase chegando ao meio-dia.
Morreu sentado diante do barraco, sentado num banquinho.
Vizinhos avistaram e correram para acudir. Já era tarde demais. Um caixão de
ripas foi providenciado pela assistência social e o corpo estendido por cima de
dois tamboretes na saleta apertada da moradia.
Duas ou três pessoas passaram por ali, para o último adeus. Mas
depois do entardecer não apareceu mais ninguém. Nem vizinhos, amigos da praça
ou outros conhecidos. E quanto mais o tempo passava mais a solidão do falecido
aumentava.
A noite chegou e nenhuma vela acesa. Nenhuma beata acorreu para
a sentinela, nenhum canto de despedida foi entoado. Apenas o vento soprando
pela porta aberta. E lá dentro a solidão da solitária morte.
Sem uma vela, sem uma prece, sem um adeus, apenas a morte
velando o morto, apenas a morte…
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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