*Rangel Alves da
Costa
Hoje, data
em que se comemora o Dia da Mulher, repasso um texto escrito no passado e que
reflete bem outra condição feminina: a velhice, o abandono, a difícil vida, o
difícil viver. Um texto sobre uma velha mulher, e certamente uma mulher que não
se encontra tão escondida no seio de nossa sociedade.
Seus olhos
profundos e sem luz, quase sumidos nas entranhas da pele escura e enrugada que
lhe adorna, parecem ver apenas sombras e nublados naquilo que se põem a olhar.
Mas insistentemente Sinhá Titoca mira a vida, e intimamente reflete o que
avista ou recorda neste ato solitário de todas as tardes, principalmente após o
entardecer.
Velha
Antônia ou Sinhá Titoca, do mesmo modo dá atenção a quem lhe cumprimenta de um
jeito ou outro. Já não recorda o tempo que alguém pronunciou seu nome de
batismo: Antônia Rosarina das Mercês. Achava nome bonito demais para uma filha
de escravos e que escravizada também viveu.
Mas a
escravidão dos libertos, ou dos libertados sem ter de si afastados o peso dos
grilhões e a dor das chibatas do preconceito, da discriminação, da falta de
oportunidades para viver e do reconhecimento como pessoa humana. Desse modo,
apenas uma escrava liberta e jogada numa nova senzala, aquela da miséria e do
esquecimento. Os que chegam somem no passo seguinte.
Hoje
pequenina pela idade que parece encolher, de cabelo carapinha todo branquinho,
convivendo com sua fé mista de catolicismo e deuses africanos. Ao lado das
fitas já esbranquiçadas do Senhor do Bonfim sobressaem-se sempre, e por todo
lugar, as imagens de santos e plaquetas com dizeres religiosos. Mas nunca leu
uma só palavra. Nunca aprendeu a ler nem escrever.
Foi
empurrada às brenhas da cidade e aí permaneceu num casebre ao lado do seu amor
de mesma cor e raiz. Mas um dia, depois de longo tempo de verdadeiro banzo
distante da paz no campo, o companheiro fechou os olhos de vez e ela ficou
sozinha. E o tempo passou, sua casinha ficou cada vez mais comprimida com as
novas moradias, mas ela permaneceu aí sem ter para onde ir nem o que fazer.
Cocada
branca, arroz doce e mungunzá, não havia nada mais saboroso do que ela fazia.
Depois do meio-dia colocava suas guloseimas numa mesinha na entrada do casebre,
cobria tudo com toalha rendada e de alvura de leite, e se punha a esperar a
clientela chegar, bater palmas, chamar seu nome. Houve um tempo que não dava
pra quem queria, mas a clientela foi se mudando, rareando, até que ficou
dispendioso demais tanto trabalho para nenhum lucro.
Deixou de
lado as comidas de coco e teve de aceitar como ofício aquilo que já fazia desde
muito tempo, que era rezar e benzer as pessoas que chegassem necessitadas de um
auxílio. Ali chegam pessoas se dizendo tomadas de mau olhado, com espinhela
caída, cheias de enfermidades desconhecidas, envoltas em convulsões, e mais um
rosário de doenças ou meros temores em busca das rezas milagrosas da velha
senhora.
Em tom de
brincadeira, mostrando uma dentadura ainda forte e de mármore branco, brinca
com quem chega pedindo para que faça trabalho amoroso; ou seja, que faça rezas
e encantamentos para o amado fujão voltar de vez e se apaixonar. Ou amarrar o
cabra, como costumam dizer. E acrescenta que se mexesse com essas estripulias
não vivia naquele deserto de solidão. E pede desculpa por não invocar entidades
nem se ajoelhar perante a divindade para pedir intercessão junto às coisas do
coração.
Gosta
mesmo é de preparar chás, infusões, unguentos, pastas com remédios medicinais.
Possui uma pequena farmácia no seu quintal onde cuidadosamente cultiva boldo,
mastruz, erva-cidreira, hortelã, arruda e malva, dentre muitas outras ervas
milagrosas. Também conhece rezas antigas, ensinamentos passados de outras
gerações. E muitos dizem que suas mãos têm o dom de mandar a enfermidade às
profundezas dos sete mares e trazer fortalecimento espiritual.
Escolhe
três ramos ou folhas no quintal, silenciosamente pronuncia algumas palavras, em
seguida seu braço magro faz a planta circundar a cabeça e o corpo da pessoa.
Quando a planta se mostra totalmente murcha é porque todo o carrego saiu do
corpo e ali se instalou. E a pessoa está livre do mau olhado ou do peso que lhe
atormenta. Mas quando a planta insiste em não murchar, então ela se mostra
tomada de preocupação.
E diz que
a pessoa tome muito cuidado, mesmo estando com corpo fechado. É em corpo assim
que as chaves falsas entram com facilidade. E manda que reze três ave-maria por
três dias seguidos, que tome banho com água de cuia e não deixe o vento do entardecer
subir pelas coxas. É esse vento tinhoso que desanda a vida de qualquer um.
Depois
agradece a moeda colocada em sua mão. E o dia seguinte a encontrará na mesma
solidão dos tempos, conversando com as plantas, ouvindo os gemidos de dor de
suas raízes escravas.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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