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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 19 de agosto de 2010

ENTERREM MEU CORAÇÃO NA CURVA DO SERTÃO (Crônica)

ENTERREM MEU CORAÇÃO NA CURVA DO SERTÃO

Rangel Alves da Costa*


O escritor norte-americano Dee Brown publicou em 1971 um famoso livro, cujo título é quase o mesmo do consignado a este texto. Em "Enterrem meu coração na curva do rio", Brown cuida do massacre e do sofrimento imposto aos povos indígenas durante os avanços exploratórios do homem branco no oeste americano.
Contudo, o presente texto se afasta dessa perspectiva para tratar de um tema correlato, também sobre povos explorados e humilhados, mas perante a abordagem da conhecida "Carta do Cacique Seattle", enviada em 1855 pelo chefe da tribo Suquamish ao presidente dos Estados Unidos, Francis Pierce, relatando porque as terras indígenas deveriam ser preservadas em nome do seu próprio povo e de tudo que os seus ancestrais conheciam como existentes nela.
Na perspectiva do mundo nordestino, especialmente da nação sertaneja, a resposta enviada pelo bom caboclo a qualquer um governante que pretenda continuar tratando o seu povo como mísero animal que cala o grunhido de fome com uma esmola, seria a seguinte:
O grande chefe que está no poder mais uma vez nos manda um punhado de alimento para, ao mesmo tempo, diminuir a nossa fome e calar a nossa voz. Nós vamos continuar aceitando sua oferta porque o que nos chega não vem da dispensa do seu palácio nem do seu gabinete. Tudo é comprado, adquirido com o dinheiro do povo, com o nosso pobre dinheiro, e o que nos chega não é como esmola, pois já é nosso.
Como se pode comprar a felicidade do homem sertanejo com um punhado de alimento e um rio de promessas que todos sabem que jamais serão cumpridas? Esquece o grande chefe governante que o homem do campo, caipira, matuto ou caboclo, já nasceu rico demais para se vender por qualquer coisa. Todo o dinheiro do Tesouro não compraria o amanhecer sertanejo, a beleza dos campos entristecidos pelas estiagens, a natureza reluzente mesmo no marrom da secura, as noites de lua cheia e o canto dos pássaros e o rebuliço dos animais por todos os cantos.
Sabemos que o homem quando se torna governante, mesmo que já tenha caminhado pelos nossos caminhos e furado os pés nos nossos espinhos, sempre esquece do nosso modo de viver. E esquecendo como vivemos, finge não lembrar mais do que precisamos, das carências mais presentes nas faces do povo, das necessidades estampadas em cada lugar e canto. Mas não esquece por completo porque sempre volta em época de eleições e, só Deus sabe como, bebe da nossa gota de água e come do único capão que resta no quintal. E volta feliz e sorridente porque sabe que o povo será iludido mais uma vez.
Por viver num outro mundo, rodeado de riqueza e poder, o grande chefe governante jamais se reconhecerá no nosso mundo. O céu prateado de lá é muito diferente do céu estrelado de cá; as distâncias de minutos que possuem não são as mesmas léguas que caminhamos debaixo do sol para trabalhar; seu mocassim é mais caro e mais forte do que a nossa alpercata, mas não tem a coragem de caminhar pelas veredas e trilhas perigosas que caminhamos. Ademais, grande chefe governante, temos uma coisa que te faltará sempre enquanto estiver no poder e se agarrar com unhas e dentes no poder que tem, que é a dignidade e a honra de sermos apenas o que somos.
Quando quer se eleger, grande chefe governante, você chega aqui e sempre o recebemos de braços abertos, mesmo que os nossos olhos queiram fechar para não recordar do passado. Ainda assim ouvimos sua voz e aceitamos os panfletos e santinhos dizendo que é o melhor do mundo. Fingimos acreditar porque somos educados. Somos pobres, mas somos educados. Mas toda a sua formação e conhecimento não são bastantes para, ao menos, dizer que é alfabetizado na vida. O homem que vê a miséria ao redor, que vê a fome ao redor, que vê a tristeza ao redor, que vê um mundo de necessidades ao redor e mesmo assim não compreende do que precisamos não pode ser alfabetizado.
Quando chegar aqui, grande chefe governante, procure ao menos lembrar que o sertão não é feito somente de pessoas, principalmente de pessoas que votam, mas também são as matas que estão sendo destruídas, são os rios que estão secando pela degradação ambiental, são as espécies em extinção da fauna e da flora, são os avanços do progresso que chegam destruindo tudo e não procuram preservar nem nossas catingueiras, baraúnas e juazeiros, nem nossos preás, nossas perdizes e nambus, nossos modos e meios de vida. Até o homem, grande chefe governante, está ameaçado de extinção pela violência que impiedosamente se alastra.
Lembre, grande chefe governante, que temos famílias, filhos que mais tarde talvez não sejam como nós; temos história, cultura, tradições e manifestações próprias que precisam ser preservadas em nome das gerações futuras de sertanejos. E toda vez que nos olha apenas como eleitores está destruindo o homem e suas raízes, está desrespeitando nosso sagrado direito de ser reconhecidos como pessoas que acima de tudo merecem respeito.
Do contrário, grande chefe governante, ao querer continuar nos tratando como indigentes e miseráveis, mais respeitoso seria enterrar nossos corações na curva do sertão.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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