SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 6 de agosto de 2010

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 68

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 68

Rangel Alves da Costa*


Se fosse possível buscar as raízes da maldade, indo lá nas suas primeiras causas até encontrar o dedo que junta a fórmula do veneno, seria fácil apenas olhar para os olhos que lampejam o ódio e cortar os dedos que manipulam a discórdia, a inveja, o terror, o medo. Bastaria que cortasse, que extirpasse os dedos, e deixaria que o resto sofresse as consequencias da incapacidade em continuar tão facilmente praticando o mal. É que coisas existem que perdem as forças quando quaisquer dos seus tentáculos são alcançados.
Naquela noite, ao menos que supostamente, a prática terrena do mal foi em parte confirmada por dois fatos que ninguém pode afirmar se vinculados, mas que interligados. O primeiro pela causa; o segundo pelo causador.
Cansado pelo dia de despedidas, Lucas dormia a sono solto enquanto mais uma vez entravam no seu cercado e agiam para destruir. Desta vez fizeram uma destruição afetiva, atingindo algo que ninguém em perfeita consciência poderia prever, pois escolheram como alvo precisamente aquela árvore frondosa que ficava bem defronte à casa e ao barracão.
Ao redor daquela árvore centenária tudo se fez possível desde muito distante, num passado onde somente as lembranças escondidas no baú dos tempos podem e sabem recordar. Aquela nativa das caatingas foi testemunho das lutas de homens valentes para se estabelecer no local, para erguer suas primeiras choupanas, desbravar o desconhecido, limpar pedaços de terras, abrir sulcos e jogar as sementes da sobrevivência no chão prenhe. Serviu de abrigo aos viajantes dos sertões e sombra aos seus habitantes naturais, os bichos. Passou a ser o local de descanso e reflexão para os moradores, nas tardes já cansadas pelo dia de trabalho.
Nas noites de lua bonita, embaixo daquela árvore é que se podia sonhar de olhos abertos. Quantas e quantas vezes os pais de Lucas não enxergaram vultos e luzes estranhas noite adentro, tendo a certeza de que não eram coisas desse mundo, mas de um mundo já há muito passado. Atualmente ainda ali como olhos tristes presenciando tudo e talvez tendo a certeza de que melhor sorte haverão de ter os homens nessa vida. E agora ela própria vítima da maldade do homem, da insensibilidade e da pura perversidade desse ser que se nomeia como humano.
Assim, enquanto Lucas dormia sem ter deixado as janelas abertas dos sonhos, chegaram silenciosamente e também quase que silenciosamente cortaram a árvore pelo tronco. Fizeram um trabalho profissional, com serra elétrica, de forma muito cuidadosa e silenciosa, de modo que ninguém pudesse ouvir o barulho da carne nativa sendo cortada e nem o barulho com o corpo da frondosa desabando.
Com seus galhos, gravetos e folhas certamente caíram ninhos, passarinhos de todos os tipos, meninos sapecas que subiram nela anos a fio, frutos de toda espécie, uma lua bem cheia que morava num galho, uma nuvem que se escondia por ali e milhares de estrelas que continuavam brilhando por entre as folhas mesmo com o sol caudaloso. Anjos quase foram esmagados e luzes de todas as cores tiveram que fugir para não desaparecerem junto com a vida da árvore. Tal era o encanto da árvore e tal foi a destruição.
Logo de manhãzinha, acordado pelos passarinhos que só faltavam bater na sua janela, assim que abriu a porta Lucas encontrou aquela cena dramática. A árvore estava lá estendida, estirada sem vida. Foi de perto confirmar o que não queria acreditar e não teve dúvidas de que as mesmas pessoas que atacaram sua casa, mataram animais e praticaram outros atos, voltaram mais uma vez para deixar um novo recado. Qual seria a próxima mensagem? Pensou.
Sentou em cima do tronco da árvore caída e ficou pensando num monte de coisas, desde as palavras de sua irmã pedindo para que fosse embora dali até a sua própria decisão em ficar. E reafirmava sua opção em continuar, pois tinha a certeza de que conseguiria vencer tudo aquilo o mais rápido possível. Assim, enquanto imaginava coisas e situações, pôde enxergar alguma coisa pregada numa das portas do barracão. Levantou e se dirigiu naquela direção, e já perto percebeu que se tratava de uma folha com algo escrito que havia sido colocada ali naquela mesma noite.

"Lucas,

Pelo amor de Deus, tenha muito cuidado com a sua vida, procure a todo custo se proteger e se preservar, pois pessoas muito influentes querem eliminá-lo de vez. Elas querem destruir você não pelo que signifique hoje, mas pelo que vem construindo e vem sendo reconhecido pelo povo. É isto, pelo que poderá ser amanhã. Essa sua obra causa muita inveja nelas porque nunca pensaram em fazer isso para ajudar ninguém, e quando outros começam a fazer o bem é como se ameaçassem os seus poderes e o seu mando. O que mais temem é que aos poucos você vá ganhando reconhecimento do povo pela sua obra e como isto ganhe forças perante o eleitorado. Uma pessoa pobre, humilde, morador da periferia, ganhando poderes para disputar uma eleição com chances de vencer seria um desastre para eles. Por isso é que estão querendo cortar você pela raiz, para que não cresça ainda mais pelos trabalhos que desenvolve e desenvolverá muito mais. E não se sabe o que serão capazes de fazer para eliminar de vez o que para eles é um grande problema. Por isso cuidado.

Um amigo".

Quem terá escrito isso? Ficou se perguntando enquanto relia a carta.


continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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