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quarta-feira, 11 de agosto de 2010

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 73

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 73

Rangel Alves da Costa*


Do jeito que as coisas iam, aquele veneno derramado poderia respingar até mesmo nos meninos. Pessoas inocentes já estavam sendo afetadas, mas não poderia, sob hipótese alguma, deixar que Guiomar, Paulinho, Antonio, Maria, Juca e outros sofressem qualquer dano. O ódio cego em pessoas cegas não escolhe vítimas, esta era a realidade.
Contudo, o que Lucas planejou fazer naquele instante certamente que entristeceria muito os meninos. Muitos deles não compreenderiam e até chamariam para si a briga se soubessem em profundidade o que realmente estava por trás daquilo tudo. Mas era preferível que sofressem por um fato, passageiro, do que se tornarem em potenciais vítimas dos olhos e mãos da maldade. Esse sofrimento que seria necessariamente imposto seria também a única forma de os pais delas continuarem sobrevivendo com dignidade.
E assim, o relato do plano de Lucas para evitar que os pais das crianças sofressem represálias foi o seguinte: Cada pai deveria chamar o seu filho e explicar a situação, as ameaças que vinham recebendo e as consequencias de continuar frequentando e ajudando no barracão e na praça da cruz. Antes disso, porém, o próprio Lucas já teria explicado a todos eles conjuntamente sobre a necessidade de se afastarem dali por uns tempos, até que a situação voltasse à normalidade. Tudo deveria ser feito de modo que as pessoas do prefeito percebessem que os pais deles haviam proibido permanentemente que continuassem frequentando o local e até falando com Lucas.
E ficaram acertados assim, com todos se comprometendo a cumprir sua parte. E ainda nesse dia, ao se avistar com Paulinho e Maria, Lucas pediu que avisassem aos demais meninos que precisa fazer uma reunião como todos eles no dia seguinte, na casa dele. Não seria nem no barracão nem praça da cruz para evitar que os olheiros do prefeito e outros inimigos percebessem sobre o que tratariam no encontro. Pediu ainda que não chegassem todos em grupo, mas de modo disperso para não chamar muito a atenção. Quem sabe se não ficariam pelos buracos e frestas olhando e vigiando? Ficariam, isto com certeza fariam, pois é próprio e sintomático nos covardes agirem assim.
No outro dia, muito depois da hora marcada, senão todos, mas a grande maioria dos meninos estava reunida dentro da casa. A casa pequena, parecia ter crescido diante de tanta gente. E quando não podia esperar mais por ninguém, Lucas pediu que todos se acomodassem como pudessem ao seu redor e silenciosamente ouvissem o que tinha a falar. No momento certo poderiam expressar o que desejassem.
Lucas não procurou fazer rodeios nem floriu seu linguajar. Disse tudo e disse mais, relatando tudo o que vinha ocorrendo e o que poderia ainda ocorrer. De modo específico, falou sobre a visita daqueles dois pais aflitos e quais as providências que foram tomadas, do melhor modo e para o bem de todos. Por fim falou da necessidade de se afastarem dali por uns tempos. E este foi o momento mais dolorido para todos.
Teria que ser assim, falando logo a verdade porque não se tratavam mais de crianças, mas de adolescentes com senso crítico em formação e que já tinham o discernimento sobre aquela realidade. O impacto que isto traria seria apenas momentâneo, pois nos instantes e nos dias seguintes todos já estariam com suas armas de luta definidas na cabeça.
Ao término das palavras de Lucas, muitos choravam, outros mostravam uma indignação raivosa nas faces e nos olhares, chegando a tremer de revolta, e ainda outros simplesmente ficaram calados numa mudez que talvez fervilhasse por dentro. E alguns começaram a dizer coisas ao seu modo, segundo o momento e o espírito permitiam:
Paulinho: "Tem uma história que diz assim: eles passarão e eu passarinho. Assim, quando a gente tiver voando bem alto, será muito acima dos urubus que estarão comendo suas carniças".
"Eles pensam que podem tudo, fazem tudo, mandam em tudo, impõem tudo, mas sabem que não podem fazer tudo o tempo todo, pois chegará um dia, quando eles precisarem fazer o mínimo para salvar suas almas, sentirão que não podem nem implorar para que Deus os salve". Foi o que filosofou Juliana.
Guiomar veio com essa: "A gente finge que tem medo, que se esconde, que chora, que se desespera, que corre e que morre. Eles podem fingir o que, se todo o mal que acontecer a eles será tudo verdade?".
"Ora vejam vocês, estamos tristes agora, muitos estão chorando e outros sem saber o que fazer, porém mais tarde já estaremos aceitando essa realidade e lutando para dar um jeito em tudo, para que retornemos trazendo em dobro tudo o que conquistamos. Mais tarde nós vamos sorrir, brincar, comer e dormir. Será que eles tem fome e sono como pessoas comuns, será que sorriem e falam como pessoas comuns? Acho que não. Tem gente que tem até medo de fechar os olhos por causa dos pesadelos que certamente virão".
E Lucas falou: "Então vou dizer uma coisa nova e que vocês nunca ouviram: quem faz aqui paga aqui mesmo".
E todos sorriram.


continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Um comentário:

maria J. Santos disse...

Realmente uma grande lição de vida para se refletir "tudo que se faz, aqui se paga".
Parabéns pelo Blog, conteudos interessantes, muito bom.