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domingo, 1 de agosto de 2010

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 63

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 63

Rangel Alves da Costa*


No instante que ia colocando o primeiro pé na calçada da igreja, Lucas vê chegar um carro em correria maior que o normal para o centro de uma cidade e parar bem nas suas costas. Foi preciso dar um pulo para não ser atropelado. Era o carro da delegacia, de onde um policial falou lá de dentro mesmo: "O delegado manda lhe intimar pessoalmente para comparecer agora mesmo até à delegacia. Se quiser pode entrar no carro, senão vá andando mesmo, mas não deixe de ir".
Estranho, pensou Lucas. Só podem ter andado me vigiando para saber da minha presença aqui nesse momento, pois do contrário o delegado nem em sonhos saberia onde estou agora. Mas o que será que ele quer? Talvez já tenham encontrado pistas sobre qual o animal que foi até a porta da frente e depois até a porta de trás de minha casa, deu uma pesada que derrubou tudo.
Talvez já estejam com a impressão digital das patas e queiram que eu reconheça o meliante no álbum dos ruminantes criminosos. Coisa bonita pra polícia: "Procura-se boi destruidor de portas: é branco com malhas negras e possui porte de lutador de jiu-jitsu". Lucas sentia até vontade de gargalhar.
Assim que chegou na delegacia foi conduzido de imediato até a sala do delegado. O ambiente que viu o deixou totalmente surpreso, pois não é fácil de se ver salas de delegado com bancadas totalmente novas, sofás os mais requintados, cadeiras parecendo de palácios, geladeira, equipamentos tecnológicos de última geração, enfim, tudo.
Não havia como não parabenizar a autoridade policial, e assim o fez: "Desculpe, delegado, mas isso aqui parece que passou por uma reforma geral. Muito bom, realmente ficou muito bom. Parabéns". E o delegado emendou: "Obrigado, foi apenas uma ofertinha do senhor prefeito – Se engasgou totalmente, desconfiado -, digo melhor, do estado perfeito. É isso aí, do estado perfeito".
Lucas não quis interferir nas trapalhadas do delegado para não criar constrangimentos. Assim, ele mesmo puxou outra conversa:
- Pois não, senhor delegado, estava quase entrando na igreja quando os seus comandados avisaram que desejava falar comigo. Pois não, pode falar o que deseja.
E o rapaz, revirava uma coisa e outra, sempre de cabeça baixa, como quem estivesse procurando o que dizer. E de repente se voltou e falou:
- É sobre diversas queixas que tenho recebido do barulho que fiéis vêm fazendo lá no seu barracão, que vai desde o cair da noite até já de madrugada. Dizem que é uma pregação de alto-falante em punho que o pessoal das redondezas não pode mais nem assistir televisão, ouvir rádio, conversar, dormir, fazer nada. Por acaso o senhor virou pastor ou está alugando aquele barracão para alguma dessas igrejas evangélicas que surgem a cada dia e em cada ponta de rua?
Lucas parecia não estar acreditando no que ouvia, diante de tantos absurdos proferidos em tão pouco tempo. Por isso mesmo é que ele quase não começa a falar, pensou. Estava procurando como dizer tantas asneiras sem ter que cair no ridículo. Mesmo assim respondeu:
- Desculpe, senhor delegado, acho que houve um equívoco. Se tais queixas foram prestadas, certamente que foram contra outra pessoa, outro barracão e em outro lugar, pois lá no meu, a partir das seis horas da noite, as portas são todas trancadas e ninguém pode ouvir o menor ruído nem lá por dentro nem fora, a não ser os sons da natureza e os que são produzidos na minha casa. Portanto, procure averiguar onde fica esse barracão barulhento, pois lhe garanto que o meu ainda não caiu nesse exacerbado modismo religioso.
Agora de costas, ajeitando códigos novos numa estante também novinha, o delegado falou:
- Mas não restam dúvidas que é a baderna é no seu barracão mesmo. O prefeito – Engasgou de novo -, ou melhor, o perfeito cidadão não mente. Eu mesmo mandei que alguns policiais ficassem de campana por alguns dias e eles mesmos constataram que o seu barracão está infringindo todas as normas legais que garantem a paz, o silêncio e a ordem pública. O povo não suporta mais aquilo lá não e eu não tenho o que fazer senão mandar lacrar o barracão de vez. As provas estão todas juntadas ao inquérito, com fotos mostrando você pregando no mais alto som do mundo, fiéis se pranteando em lagrimas e palavras e aquela bagunça toda. Está tudo comprovado nos autos...
- E onde estão esses autos, tragam até aqui, tenho o direito de ver as provas que foram contra mim produzidas. Mostre as provas, senhor delegado... – Disse Lucas já irritado com tanto absurdo.
- As provas estão com o senhor prefeito. É que ele andou sabendo da situação e me pediu para analisar o caso em seu gabinete, que é pra ver se pode interceder de alguma forma em seu favor. Está entendendo?
- Estou entendendo muito bem. E passe muito bem o senhor também – E saiu sem ao menos perguntar se o delegado queria saber mais alguma coisa.
Assim que o delegado viu Lucas saindo enraivecido, levantou, foi até a porta e gritou:
- Ei rapaz, volte aqui. Você precisa falar também sobre aquela carvoaria no seu quintal que vem poluindo a cidade inteira...
A ilustre autoridade policial ficou irritada com a atitude do rapaz, desrespeitando alguém tão importante. O problema é que não tinha argumento algum para mandar prendê-lo por desacato. Principalmente porque aquele papel ridículo que estava fazendo não era papel nem de homem nem de autoridade alguma.


continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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